NEIM: Manual de auto cancelamento.

Atualmente, na sociedade pós-moderna líquida, gasosa, insipida e inodora, a humanidade se divide em quatro tipos de pessoas. Quem foi cancelado, quem será cancelado, quem cancela e será cancelado e quem não adquiriu relevância suficiente para ser cancelado. O cancelamento tornou-se questão de status. Só é cancelado quem faz por merecer ou quem cometeu o erro certo na hora certa para parecer que merece. Se antes se dizia que não basta a mulher de César ser honesta, precisa parecer honesta; hoje não basta parecer estar errado, é preciso ser punido em praça pública.

Se seu objeto é entrar para o exclusivíssimo panteão dos cancelados, esse manual é para você. Basta seguir nossos onze mandamentos do auto cancelamento que, em pouquíssimo tempo, poderá gozar das benesses reservadas a essa elite da infâmia.

1o. mandamento: fale e escreva sem pensar. Nada é mais prejudicial para pretensões de cancelamento do que ponderação. Quem pensa antes de falar ou escrever jamais ganha manchetes, no máximo recebe tapinhas nas contas. Entre um inofensivo tapinha nas costas e uma facada nas contas opte sempre pela categoria mais dramática, salvo se não estivermos falando de metáforas.

2o. mandamento: seja politicamente incorreto. Milan Kundera, o escritor tcheco que sabia o que era bom e morava na França, em seus últimos momentos de lucidez, revelou na forma de literatura a verdade inconveniente de que o termo “politicamente correto” surgiu na corte de Stalin, como forma de não desagradar o próprio baixote bigodudo. Com esse pedigree, boa coisa não deve ser. Uma forma garantida de ser cancelado é desafiar convenções de manipulação da linguagem em prol de objetivos políticos ou politicamente direcionadas. Nenhum cancelador é mais aplicado do que aquele que acredita em uma “causa”.

3o. mandamento: defenda que a grama é verde. G. K. Chesterton, no começo do distante século XX, profetizou que chegaria o dia em que precisaríamos defender que a grama é verde. Esse momento chegou, aproveite. Mas não aproveite para ser um monótono arauto da verdade, aproveite apenas para conseguir entrar em debates fundamentais sem precisar estudar muito. O mundo pós-moderno desconstruído lacaniano prega que a grama não precisa mais ser verde. Quem precisa de física, metafísica, hermenêutica ou retórica para defender que essa perspectiva é uma bobagem e ser cancelado por isso?

4o. mandamento: transforme-se em um meme. Um meme pode garantir anos de infâmia ou, com pouca sorte, pelo menos os quinze minutos de fama apregoados por Andy Warhol. Obviamente, quinze minutos de fama é melhor do que nenhum. O efeito de um cancelamento pode ser passageiro. O auto cancelado precisa estar consciente de que seus esforços não durarão para sempre. Curta cada minuto dos quinze. Se aparecer o minuto dezesseis o agarre com força pelo rabo de foguete.

5o. mandamento: prefira ser odiado a ser amado. Essa variação do pensamento filosófico de Maquiavel tem alimentado carreiras e contratos para presença VIP há décadas. Um hater nunca trai em seu ódio. O amor, como um líquido em tempos líquidos, escapa pelas mãos.

6o. mandamento: prefira deslikes aos likes. Um dos maiores erros cometidos pelos participantes da maratona da fama e da infâmia é a obsessão pelos likes. Em outras palavras, pela aprovação. Não raramente, mesmo quem distribui opiniões deliberadamente controversas alimenta o desejo de ser avalizado pela massa. Grande erro. Isso é pregar para convertidos. Likes e deslikes são duas faces da mesma moeda digital. Uma das verdades universais consagradas é a máxima de que “falem mal, mas falem de mim”. Quem fala mal nunca para, quem elogia uma vez, não necessariamente vai mexer um dedo para elogiar uma segunda.

7o. mandamento: ria na cara do perigo. Um auto cancelado pode tranquilamente ser uma pessoa medíocre. Qualquer individuo com má intenção suficiente pode chegar lá, ainda que seja em âmbito local, paroquial ou no condomínio. Contudo, um esforço mínimo precisa ser realizado. Desafiar o status quo. Um cancelado é sempre alguém que falou mais do que devia. Não importa se o que falou é certo ou errado. Sabemos muito bem que existem verdades inconvenientes e inconveniências verdadeiras. Se deseja ser cancelado, desafie essas convenções. Sem dor, sem ganho.

8o. mandamento: fale a coisa certa na hora errada. A arte do auto cancelamento necessitada de um bom timing. Pouco adianta falar ou escrever algum absurdo sobre um tema sensível que não está na berlinda. Ninguém é sensível o tempo todo com todos os temas. Saiba escolher bem seu alvo.

9o. mandamento: não seja ganancioso. Há temas sensíveis para todos os gostos e falta de gosto. Não aborde todos sem critérios. Escolha um, dois ou, no máximo, três e se torne especialista neles. Ninguém leva a sério, e consequentemente cancela, quem ataca tudo e todos sem critério. Vai parecer apenas desesperado para aparecer e não um indivíduo movido por opiniões condenáveis ou falta de noção genuína.

10o. mandamento: tenha planejado seu pedido de desculpas. Um discurso longo, choroso e humilhante demonstrando arrependimento será uma rica oportunidade de dividir o público mais uma vez. Muitos vão te acusar de hipocrisia. Outros tantos vão te acusar de covardia. Ser bi-cancelado é sempre uma vitória.

11o. mandamento: se recuse a fazer um pedido de desculpas. Empáfia, orgulho, dar uma de senhor da razão ou simplesmente não se importar possui amplo potencial de irritação dos irritados e ofendidos profissionais. A reação ao fato de você não reagir pode gerar uma reação em cadeia de ódio. Mídia espontânea da melhor qualidade. Um novo cancelamento é praticamente inevitável. Ser bi-cancelado, sem fazer nada, é sempre uma vitória maior.

Aproveite as dicas e boa sorte em sua má sorte. Estamos torcendo contra você.

Ademir Luiz é doutor em História que escolheu a profissão porque era fã do Indiana Jones. Pós-doutor em Poéticas Visuais e Processos de Criação, seja lá o que isso signifique, medievalista sazonal, especialista na Ordem dos Templários, criador da Teoria da Conspiração que transformou a Vila do Chaves em uma visão do inferno de proporções dantescas, aluno do Padre Quevedo, foi exorcizado na Igreja Universal do Reino de Zeus. Escreve romances, contos, ensaios e quadrinhos, mas nunca durante a possessão.