Um poeta antes de mim. Por Renata Quiroga.

Um signo é aquilo que os outro(s) signos não são. Se por um lado o valor linguístico da palavra está na competência expressiva de um ideário, por outra via talvez fosse boa ideia escondê-la, ou trapaceá-la. Esse enredo pode ser um bom começo de conversa entre psicanálise e comunicação.

O duelo de palavras que os psicanalistas e os comunicadores travam já teve vários encontros marcados. Ao longo do tempo, os dois discursos fizeram inter locuções de fala e escuta pelos caminhos das tendências literárias; da dominação midiática; e do amor poético.

O século XIX entendeu o Homem sob a perspectiva darwinista de evolução que jogava para cima da espécie um tipo de força inabalável que o convocava à decisão de arrefecer-se ou civilizar-se. O desenvolvimento tão desejado para um povo só poderia acontecer se achassem um tesouro no fundo do mar com uma bússola, um mapa, uns pedaços de controle, uns quilos de equilíbrio e boa dose de utopia.

Somaram-se a esse a desejo de perfeição tintas disseminadoras dos preconceitos, que surgiram do caráter racial das teorias evolucionistas. Os processos higienistas biologizaram a História para o surgimento de novas transformações sociais.

As ideias brasileiras alinhavam-se à positivista aspiração de crescimento e progresso. O poder social da literatura brasileira, no manejo da máquina de intelligentsia nacional, emprestou forte representatividade para a imagem do país.

O Brasil do século XX ainda aguardava o canhão de luz da Modernidade. Era esperada a promoção de uma engenharia de alta potência capaz de nos vender a tal civilização dos ricos subúrbios norte-americanos. Mas, o sonho dourado tinha umas moedas de ouro a pagar.

Na perspectiva naturalista, misturas e mestiços atrapalhavam o processo civilizatório. Nesse sentido, o progresso feito por homens considerados de natureza superior contribuiu com ingredientes de forte sabor para o grosso caldo do preconceito racial.

Aliado a esse fato, a referência europeia de funcionamento perfeito abalava-se após o fim da Primeira Guerra Mundial. Os ideais de super equilíbrio exemplificados pelo continente mais experiente escorriam pela agressividade jamais vista em nossa história. Não havia explicação para as barbáries ocorridas. O sangue espirrou nos muros que dividiam os bons dos maus; os negros de todos os outros; e a visão biológica do funcionamento humano cedia espaço, mesmo que timidamente, para a subjetivação entrar por algumas pequenas frestas.

Nesse momento, o pilotis literário que balizava a imagem nacional rumo ao progresso apresentava rachaduras estruturais. Parte da intelectualidade brasileira interessou-se pela singularidade do indivíduo em lugar do homem perfeito.

A rotação de ponteiros, da Biologia para a Cultura, provocou a articulação da Literatura com a Psicanálise. O Modernismo deu as boas vindas ao discurso psicanalítico no Brasil por afastar-se da tendência organicista vigente. A psicanálise freudiana era filha da ruptura de seu pai com o biológico. Literatura e Psicanálise estabeleciam a dialética da palavra pela via da sublimação com ou sem seus limites.

O modernismo capturou o viés psicanalítico sobre a escrita e sobre si-mesmo ao reescrever o brasileiro. As obras literárias desviaram das descrições biológicas e positivistas, lançaram esse personagem brasileiro às garras de sua própria cultura e singularidade.

O movimento modernista soltou-se da tristeza romântica, da psicologia das almas e seguiu o trem psicanalítico que buscava relativizar o tema da moda: saber quem sou eu. Toda sede de subversão às novas formas linguísticas também uniu Literatura e Psicanálise. A linguagem modernista abasteceu-se de inúmeras novas aquisições: inconsciente, sexualidade, regressão. Sem esquecer sublimação, a queridinha dos poetas!

Freud seguia com a contabilidade das exigências civilizatórias, os pagamentos libidinais, os saldos repressivos e o balanço do pós-guerra para entender as razões e desatinos da agressividade. Guarnecia-se da linguagem dos mitos e da Filosofia para compor a grandiosidade de sua teoria.

Novos casamentos, antigas alianças. Psicanálise e Comunicação sempre bordando seu tecido linguístico.

As teorias da comunicação buscavam encaixar um discurso a cada tom. Na mesma Alemanha nazista havia também quem começasse a desconfiar do uso midiático da cultura. As formas de manuseio da informação conheciam o Homem em seus detalhes psicológicos e os utilizavam para capturar seus desejos em embalagens e rótulos. Era o Marketing conversando com o inconsciente.

A inflexão com a Psicanálise, nesse instante, fazia-se pela contra mão do processo de resistência. O mesmo sujeito que resistia acessar os recheios do inconsciente é, implacavelmente, abatido pelo poder da Bala Mágica. O conhecimento do campo da Psicologia que regulamenta o inter jogo entre estímulo e resposta ferramentou a mídia com a possibilidade de modular, avassaladoramente, a opinião pública.

Era um novo começo de uma longa e atual relação entre a massa e seus líderes. O universo da Propaganda ganhava perícia em amalgamar multidões acaloradas de ódio, vontade e esperança. Sem obrigatoriedade de ordem dos fatores.

Em salto diagonal na História chegamos a 2020. Nem o evento pandêmico nem as fake news são fatos inéditos na trajetória da humanidade, porém o ineditismo está, justamente, na velocidade do mundo contemporâneo. A Bala Mágica virou trem-bala e corremos atrás da potência das máquinas de forma incessante.

A velocidade das notícias fez do mundo um lugar para vizinhos que ouvem, através dos copinhos, tudo que acontece do outro lado das paredes dos continentes.

Os impactos emocionais causados por todo o horror da passagem do coronavírus pela Terra são também contaminações psicológicas entre as pessoas. Assim como a solidariedade também chega por SEDEX 10. São os dois lados da mesma tecnologia.

As notícias falsas e as verdadeiras contam para o mundo que o caos chegou para sacudir a ordem, que vinha caótica. O fantasma do caos implora por linguagem, e essa linguagem é a lei. A lei que pode nomear a indeterminação. O caos do sujeito navegando em mares disformes espera pela ordem que realoca as ondas revoltas.

O pensamento binário predomina e divide o mundo entre covardes e heróis. Sem obrigatoriedade de ordem nos fatores. Essa polaridade também comunica um lugar psíquico no cenário atual.

A incerteza dos tempos atuais também pede a disponibilidade da escuta psicanalítica para tantas falas soltas, tantas comunicações em dúvida.

O fato é que há novo achado entre Psicanálise e Comunicação disputando e dividindo a mesma palavra jogada, dita, não dita. O silêncio que fala mais do que esconde.

Nesse encontro final o psicanalista escuta a poesia das narrativas veladas, dos versos escondidos no simples sentido das rimas. Percebe que sua escuta nasceu da linguagem significante dos enunciados poéticos.

Assim como na semana de 1922, o lugar da força organicista que vence vírus por méritos biológicos, exige ser trocado pelo heroísmo dos que por ele foram vencidos. Silêncio é a transparência linguística entre Comunicação e Psicanálise.

Morrer é, acima de tudo, uma comunicação heróica.

Esta coluna homenageia o poeta e escritor Marcus Vinícius Quiroga que faria hoje – 18.06.2020 – 66 anos, caso não tivesse entrado para a estatística dos heróis literários.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.