NOVA ARTICULISTA: Sol Oliveira - Redes Sociais: os tribunais da era moderna.

E hoje faço minha primeira participação como articulista do portal O.C.I. trazendo um tema talvez um pouco polêmico, mas relevante no ponto de vista de um profissional de comunicação que observa com muita curiosidade o “devir histórico” das redes sociais.

Não é de hoje que temos acompanhado com certa perplexidade o movimento denominado “cancelamento” nas redes sociais. Trata-se do veredito final aplicado àqueles que infringem de alguma forma determinado código ou padrão social na rede. Interessante observar que em muitos casos – ou talvez em sua grande maioria -, os “jurados” não possuem acesso a fatos e dados concretos do acusado, não havendo uma preocupação em se ter os dois lados (acusação e defesa) da questão devidamente ouvidos, como sugerem os processos normais de julgamento de uma causa ou litígio.

O que vemos na prática é um massacre virtual daquele que (ainda) está sendo julgado e que fatalmente recebe(rá) a pena do cancelamento, que nada mais é do que a perda de seguidores, canais, e a não validação de qualquer ação na qual esteja envolvido, seja uma atividade cultural ou comercial. Significa que qualquer atividade ligada ao nome do “cancelado” também será alvo de desprezo e repúdio.

Participantes das redes sociais invariavelmente colocam-se na posição de mentores da lei e da verdade, numa posição clara de superioridade e supremacia em termos de valores éticos e morais. Cabe aqui uma comparação com os moldes do sistema de tribunais da antiga Grécia, ainda que em parte. A Helieia era o principal colégio de Atenas formado por cidadãos de conduta irrepreensível e não devedores do Erário. Seria uma espécie de júri popular, cujos membros se encarregavam de julgar crimes menos hediondos. Neste júri, os cidadãos julgavam o réu de acordo com as suas íntimas convicções. Já o Areopago era um segundo tipo de tribunal ateniense que se encarregava de julgar os crimes de sangue ou de sacrilégio. Seus integrantes julgavam o réu de acordo com suas próprias regras de consciência e seguindo um padrão de senso comum jurídico. Temos aqui uma similaridade com o que ocorre hoje nas redes sociais, já que nas redes, os “julgadores” emitem suas posições com base naquilo que é ou deveria ser o comportamento ético da sociedade, por exemplo: se um digital influencer é alvo de acusação de preconceito racial, ele será julgado pelas redes por assumir um comportamento claramente contrário ao que se espera dele e de toda a sociedade.

A diferença entre a forma de julgar ateniense e a forma de julgar das redes sociais reside basicamente em dois pontos cruciais: na antiga Grécia, o réu tinha o direito de se pronunciar em sua defesa e os julgadores eram cidadãos de conduta ilibada, e uma vez que as sessões de julgamento ocorriam ao ar livre, não havia sombra de dúvida quanto à dignidade de seus integrantes para realizar aquela tarefa – eles eram vistos e reconhecidos. Já o “tribunal das redes sociais” é anônimo, não está em praça pública como o de Atenas ainda que em território totalmente “aberto” da web. Não é possível saber se o veredito do “cancelamento” foi emitido por um cidadão de conduta irrepreensível, como ocorria em Atenas, não é possível garantir que o membro do júri que se levanta com toda indignação contra a injúria racial cometida por uma determinada figura pública, não tenha o mesmo comportamento em seu dia a dia e que, obviamente, não vem a público devido à proteção do anonimato.

O que vemos na maioria das situações de cancelamento na internet é uma enxurrada de “cidadãos do bem” clamando por justiça. Aqui vale mais uma reflexão que acredito ser bastante pertinente, mas que o leitor deste artigo tem todo o direito de discordar: até que ponto o “júri popular” da internet reúne fatos e dados que permitam emitir de fato um parecer quanto ao comportamento do acusado? Até que ponto as pessoas que fazem parte deste modelo de júri popular estão sendo guiadas por suas crenças reais ou pelo senso comum das redes? E, ainda com o agravante das chamadas “fake news”, até que ponto os integrantes do júri popular das redes conhecem os fatos reais ou apenas retiram parte de um contexto enredado pela própria essência das redes sociais?

Daniel Kahneman, Olivier Sibony e Cass R. Sunstein, no livro “Noise, a flaw in human judgment”, fazem uma importante abordagem do ato de julgar, tão peculiar aos humanos. Eles citam vários estudos que mostram que qualquer situação de julgamento é influenciada – entre outros fatores -, pelos nossos “pré-conceitos”, pelas nossas impressões, pela nossa condição de humor e por algo muito relacionado ao mundo das redes sociais: tendências. Sim, existem tendências que são capazes de determinar o teor de um julgamento. Estes são fatores que geram o que eles chamam de “ruído” no momento que os seres humanos julgam determinada situação.

Vale refletir até que ponto a orientação do “cancelamento” nas redes sociais atuais é fruto de um processo de “tendenciamento” do que é correto ou politicamente correto na sociedade e não uma atitude consciente diante de algo que consideramos errado.

– O tribunal das redes sociais é um espaço democrático de avaliação do comportamento humano ou um espaço autoritário de afirmação de tendências, ainda que sejam boas ou éticas?

– O que torna uma pessoa influente são as convicções que a transformam numa marca ou as tendências sociais que validam essas convicções e consequentemente essa marca?

Este artigo não tem a pretensão de responder essas questões, mas sim provocar algumas reflexões quanto ao papel das redes digitais no processo de formação de uma consciência coletiva. A temática não se esgota neste conteúdo, mas pode iniciar um bom debate no âmbito da Comunicação e do Marketing Digital.

Sol Oliveira é relações-públicas com especialização em Marketing. É gerente de Marketing e Comunicação na Tahto, professora universitária e palestrante em temas ligados a Branding, Cultura Corporativa, Mídias Sociais e Identidade Corporativa | Sololi0402@gmail.com