“Pai, não vês que estou queimando?”. Por Mariana Anconi.

Esses dias, andando pelo bairro onde moro, vi penduradas nas grades de uma quadra de esportes de uma escola pública algumas fotografias. Por alguns segundos foi como olhar no espelho e encontrar minha imagem ali. As fotografias são de rostos de pessoas cobertos por máscaras. Elas estavam expostas a céu aberto, p’ra quem quisesse ver.

A cidade serviu de cenário para a exposição do fotógrafo que decidiu fazer os registros de pessoas usando máscara depois de um período longo e difícil, após ter sido infectado pelo coronavírus. A máscara, que parece um simples pedaço de pano, passou a representar um ato de cuidado de si e com o outro. Apesar de cobrir o rosto, ela mais revela que esconde algo.

Este ano as cidades e seus habitantes precisaram se reinventar para sobreviver à pandemia. Pensar as cidades foi um desafio necessário. Os artigos que escrevi passam por perguntas do tipo “Do que é feita uma cidade?”, “Qual o lugar do desejo na cidade?”, “Como fazer da cidade um enigma?”.

Estas são algumas das perguntas que guiaram os últimos textos apontando algumas hipóteses dessa leitura que proponho a partir de uma topologia que leva em conta a relação entre os espaços e o “sujeito-habitante”. O fotógrafo – ao expor suas fotos no espaço público -, convoca o habitante a se perguntar sobre alguns ideais dessa cultura, já cristalizados, que interferem, por exemplo, na disseminação do vírus.

Em uma cidade que tem como um de seus símbolos principais uma estátua que carrega o ideal de liberdade do país, não raro vemos discussões acaloradas em torno desse tema. Há certa discordância sobre a própria noção de liberdade. Curiosamente, para alguns, a liberdade aparece como signo, algo em si mesmo que não tem relação com o outro, não depende do outro. A ideia de uma liberdade individual é o que faz alguns não usarem a máscara, sustentando o equívoco de que estão no direito de exercer sua liberdade de escolher. A ideia de uma liberdade individualista não é de hoje.

“(…) a aspiração americana à liberdade total de ação: para o americano de então, assim como para os seus descendentes de hoje, o homem está só diante de Deus e, no fundo, só tem a obrigação de prestar contas a Ele. Pode-se imaginar o que um semelhante postulado implicou em termos de violência nas relações sociais e o quanto essa negação do contrato social resultou numa associabilidade que chega a beirar a anarquia”. (MESSADIÉ, 1989, p. 32-33).

A pandemia levantou essa questão sobre o coletivo no espaço da cidade. Até que ponto minha liberdade fere a existência do outro?

Perguntas assim talvez não tivessem sido feitas por muitos, ainda. Cada vez mais foi ficando claro que o que você decide sobre sua própria saúde, por exemplo, tem impacto na vida dos outros à sua volta. Esse impacto com consequências negativas alcançou neste ano níveis radicais. O individual e o coletivo se mostraram faces da mesma moeda, mais uma vez.

Tem um aspecto a nível de surreal no ano de 2020, pois testa as fronteiras entre sonho e realidade, assim como nas obras do surrealismo, com sua expressão máxima em Salvador Dalí. Nem nos meus mais bizarros pesadelos imaginei ver avenidas de Manhattan vazias sem as multidões de pessoas caminhando em ritmo acelerado, muitas vezes driblando turistas que bloqueiam o caminho ao tentar tirar uma foto dos painéis luminosos da Times Square. Também não imaginei ver caminhões refrigerados na porta de hospitais armazenando corpos.

O vazio das ruas montou um cenário surreal, algo como uma cena onírica levantando a dúvida de tempos em tempos se estamos dormindo ou acordados. Como naquele filme (1) em que em algumas cenas surge a dúvida se o personagem de Leonardo Di Caprio está em um sonho ou se o que está vivendo é real.

O barulho de ambulâncias, já incorporadas ao cotidiano dos habitantes da ilha de Manhattan, esse ano gritou mais alto. Presenciamos cenas de terror que irão compor o museu do trauma na memória dos habitantes da cidade. Estas mesmas ambulâncias que compõem a sinfonia da cidade passaram a destoar e a lembrar a todo tempo a presença viva da morte. Não teve hashtag (2) que desse conta do caos instalado. Tarde demais? Se estamos falando de sonho, esse ano, o fracasso do sonho americano (american dream) se mostrou da forma mais cruel.

Configurar-se como um país de primeiro mundo não é suficiente para poupar e preservar vidas. Na verdade, revelou o baixo valor da vida quando não se tem políticas de saúde compatíveis com as necessidades da população. O “cada um por si e Deus por todos” mostrou sua face como um pesadelo dentro do sonho americano.

Eu, enquanto estrangeira nesse território, ainda me surpreendo com essa “coloração arrogante” (Messadie, 1989, p. 120) do american dream. A busca por uma felicidade que passa por uma liberdade individual: tragédia  anunciada. Se por um lado temos o sonho que aliena as ideias assim, por outro lado temos sonhos que causam desamparo.

Há uma passagem que o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) trabalha em seu “Seminário 11” a qual aponta para os sonhos que despertam. São sonhos difíceis, às vezes como pesadelos que, em vez guardar o sono de quem dorme, o fazem despertar. São o avesso da função do sonho: despertam e atormentam quem tenta dormir.

Lacan (2008) lembra do caso em que Freud (1996) conta de um pai que perdeu o filho e passa dias velando seu corpo. Uma noite, muito cansado, decide ir descansar no quarto ao lado, deixando a porta entreaberta. Nessa noite, o pai sonha com o filho lhe perguntando: “Pai, não vês que estou queimando?”.

Algo dessa fala do filho tem a ver com um sentimento de culpa do pai, por não ter cuidado bem do filho quando, por exemplo, queimava de febre. O fato é que o pai é despertado pela fala do filho no sonho ao mesmo tempo em que a vela no quarto ao lado havia caído sobre o corpo do menino. Sonho e realidade se encontram. O encontro com o real. “Pois se o sonho foi também a realização de um desejo, por que, com ele, o pai permitiu que seu filho queimasse um pouquinho mais, logo ali, até que um “Pai, não vês?” o censurasse e o fizesse voltar – aonde? – ao real, onde as coisas estavam pegando fogo”. (Lacan, 1964, p. 61).

A pandemia é um sonho de angústia que insiste em despertar. Enquanto alguns despertam angustiados, outros dormem em sono profundo. Em relação às cidades, vemos ainda aquelas que dormem enquanto seus filhos queimam, sem previsão para despertar. Nesse novo ano que se aproxima, que possamos despertar dos sonhos que alienam e angustiam quantas vezes for preciso.

(1) Filme “A origem” (2010). Diretor: Christopher Nolan.

(2) No auge da pandemia foi criada uma campanha na cidade de Nova York com a hashtag #NYtough para fortalecer os habitantes a enfrentarem a pandemia com coragem e responsabilidade.

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, J. (1964). Os quatro conceitos fundamentais. Seminário livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.

MESSADIÉ, G. A crise do mito americano – Réquiem para o super-homem. São Paulo: Ática, 1989.

Mariana Anconi é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Idealizadora do projeto itinerante ‘Diálogos na Cidade: Arquitetura, Cultura e Psicanálise’. Mora e trabalha em Nova York – EUA.