Noventa metros quadrados de vida, sem sacada. Por Maeve Phaira.

Dezembro, 2019. A OMS emitiu o primeiro alerta de um novo coronavírus, depois que autoridades chinesas notificaram os casos da misteriosa pneumonia na cidade de Wuhan. Era lá na China, e ninguém se importou por aqui.

Março, 2020. Acordei com a notícia de que o tal vírus da Ásia Oriental, como tudo o que a gente importava de lá nos últimos anos, tinha desembarcado no Brasil. Ninguém sabia do que se tratava, apenas que o tal vírus, agora denominando uma nova doença, Covid-19, era mortal. Mas era mortal apenas para alguns, para outros, não. Diziam que não passava de uma gripezinha. Mas o que se sabia mesmo é que, enfim, o vírus novinho tinha chegado por aqui.

– O que é isso? Como é que se transmite? – perguntei, assustada, ao meu marido.

– Não sei, Ana! Só sei que precisamos lavar as mãos com água e sabão, e usar álcool gel. Não é nada. Logo vai passar…vai passar!

Não passou. E o tal novo vírus parou o mundo. A casa virou um bloco cirúrgico. Tudo o que vinha da rua deveria ser lavado antes de ser guardado. Pronto, resolvida a questão! Era o inferno! Era isso o que deveria ser feito. Viver no inferno. Mas não era nada, logo, logo-logo, passaria, como tudo passa na vida.

Mas o vírus era resistente, o danado, e poderia permanecer nas superfícies por vários dias. Três dias no papel, sete dias nas estruturas metálicas, quatro dias não sei mais onde… e assim por diante. Era de dar dó. No início, tive vontade de chorar. Chorei, chorei, chorei… e não acreditei no que estava vivendo. “Vai passar, vai passar… meus Deus, vai passar!”

– Alberto, vem cá! Preciso da tua ajuda. Você pega o pacote, e eu retiro a pizza. Pode ser? Depois coloca a embalagem na lixeira. Não esquece do banho de álcool antes de colocar o produto na geladeira. E lave as mãos, por favor!

Logo vieram os questionamentos sobre o porquê de tantas mortes. Afinal, não era só uma gripezinha!

Não, não, não era só uma gripezinha! O vírus matava. Matava apenas os velhos, e os velhos com comorbidades. “Mas gripe sempre matou velhos, e isso não era novidade, Ana! Velhos com comorbidades a gripe sempre matou”, dizia o meu marido.

Só que esse vírus matava mil velhos por dia. E mesmo assim passou a ser normal mil velhos morrerem por dia… eram velhos, tinham comorbidades. Crianças, ah… crianças não, não! “Graças a Deus!” Elas apenas transmitiam o vírus, sem apresentar qualquer sintoma, não desenvolviam a doença – era isso o que sabíamos. “Mas, então, as crianças estavam matando velhos?”. Netos poderiam matar os avós, os pais, os tios… enfim, “que espécie de vírus é esse que se utiliza das crianças para matar os adultos?”, repetia sem entender nada. Eu não entendia, não entendia mais nada. “Que horror!”

– E o que eu faço com os meus pais, Alberto! Como vou ficar sem ir até lá? E as crianças? O que eu faço?

– Ana, acho bom você se acalmar. P’ra tudo tem um jeito na vida. E isso não vai durar muito tempo, logo, logo-logo, tudo volta ao normal, você vai ver, acredite!

Alberto estava errado, como sempre, ele estava errado, eu sabia. E não iria ser dessa vez que acertaria alguma coisa. O fato é que o normal, agora, passou a ser usar máscara, manter o distanciamento, lavar as mãos com água e sabão, e usar álcool gel, ah… e evitar contato com os amigos, festas, bares, cinema, teatros, enfim, tudo o que nos proporciona alguma alegria nessa vida. Cortaram as nossas asas. Todos no chão. Além disso, claro, também era normal mil velhos por dia morrerem… Eram velhos e tinham comorbidades. E os jornalistas entravam nas nossas casas diariamente para informar: “Mais uma vítima morre de Covid-19, mas tinha mais de sessenta anos, além de pressão alta e diabetes”.

Mas até quando tudo isso? Até quando mil velhos morreriam por dia? Ninguém sabia responder. Ah… tinha também que tirar os sapatos antes de entrar em casa, e as roupas… era para colocar direto na máquina de lavar…ufa! Mas antes de tudo isso, tinha que usar o álcool gel nas mãos, 70 graus.

Meu Deus, eu não suportava mais essa vida! E crescia em mim uma vontade de sair correndo sei lá para onde, em busca da minha liberdade, da minha vida, da minha família, e dos meus amigos. E eu não sabia mais o que fazer com aquela coisa que ia crescendo, crescendo, dentro de mim, e não tinha por onde sair, aquela coisa imensa, que apenas crescia, crescia, e crescia… Era quando vinha uma vontade grande de viver. E eu não sabia o que fazer com toda aquela vida que vivia em mim. “Eu quero viver! Eu quero viver!”.

– Ajuda, aqui! Larga isso que você está fazendo, vem me ajudar! Por favor, não é possível, não é possível que eu tenha que fazer tudo, tudo, sozinha, enquanto você não faz nada, que coisa!

– Agora, não posso!

– Mas as compras chegaram, você não viu? Presta atenção! Tem que abrir a porta, Jesus! O Betinho está chorando, estou fazendo o almoço. Você pode olhar ele p’ra mim?

– Eu estou em home office, droga! Você quer que eu atenda o telefone, atenda a entrega das compras, e cuide do Betinho, e… Acho que você enlouqueceu, Ana!

– Tá p’ra nascer quem vai gritar comigo desse jeito, Alberto!

E o fogo ardia naquelas panelas, insuportavelmente quentes – fazia 38 graus na cidade. Jamais imaginei que teria que enfrentar a cozinha, diariamente, e por tanto tempo. A Marta sumiu, mandou avisar que precisava cuidar da mãe, que estava com Covid-19. Nunca mais apareceu. Ouvi dizer que a mãe dela morreu. “Será que ela também morreu?”. “Odeio, cozinha! Eu quero viver… eu quero viver, eu quero viver!”.

Cozinha, panelas, roupas para lavar, higienização de compras, máscaras, álcool gel, 70 graus, ah… não pode levar as mãos nos olhos nem no nariz. “Betinho, tira a mão da boca! Já te disse que não é p’ra levar a mão na boca, menino, que coisa!”.

O mundo ficou lá fora, e nós quatro presos aqui, nesses 90 metros quadrados de vida, sem sacada. Porque nem uma sacada a gente tinha. E sou eu quem tem que cuidar de todos, o Alberto não serve para nada, isso eu já sabia. Olho aqui, olho ali, passo álcool gel, tem que ser 70 graus, nas maçanetas e interruptores de luz. “Lavou as mãos? Vai tomar banho, você chegou da rua!”.

Saudade de meus pais… Não quero levar o vírus até eles, não devo ir até lá, não devo! Mas eles estão sozinhos… e às vezes penso que deveria ir até eles uma vez só. Dar uma olhadinha, matar a saudade, dar um abraço, e voltar. Abraço, não, não! Imagina, e o distanciamento… Não tinha jeito, melhor era aguentar por aqui, e não ir até lá levar o vírus para eles, eu não suportaria. As crianças sentem saudades deles, e eles delas.

O Alberto diz que não é nada, que vai passar, que tudo passa na vida. Mas ele nunca acerta, ele sempre está errado, não vai ser desta vez que vai acertar. “Meu Deus! Até quando… mil velhos vão morrer por dia?”. E já estão dizendo que esse vírus veio para ficar. E dizem também que virão outros, imagine, outros piores do que ele, o novo coronavírus. “Alberto, me ajuda! Alberto, Alberto, onde você está? Alberto, eu não acredito que você saiu? Alberto…”.

Maeve Phaira, jornalista, advogada, autora do livro Outono em Copacabana.

Imagem: Google.