NOVA ARTICULISTA: Mariana Anconi - Psicanálise e cidade: da catarse ao desejo.

Alguns meses atrás enquanto caminhava na calçada de uma rua movimentada, uma senhora andava rápido na minha frente, até que uma moça em um ritmo mais devagar virou a esquina e cortou a senhora. Esta por sua vez se irritou e, em vez de diminuir o ritmo, apertou o passo e jogou seu corpo no da moça empurrando-a para o lado. As duas seguiram andando sem trocar uma palavra.

A cidade é corpo a corpo. É dureza e sutileza. Agressividade e amor. Como se num instante coubesse toda a ambivalência do mundo em um espaço mais ou menos definido por leis (visíveis e invisíveis), regras e muita contradição. Muito mais que seus prédios, casas, ruas, avenidas, rios; a cidade se constitui por uma materialidade além do concreto: a linguagem.

Como psicanalista, me interessa pensar a cidade a partir do discurso enquanto operação que estabelece formas de laço social. Lacan (1) trouxe, textualmente, quatro discursos: do mestre, do analista, da histérica, e da universidade. Se meu ofício consiste em escutar o sujeito do inconsciente a partir do discurso, pergunto: – Qual o objetivo de pensar a cidade? De início, vale ressaltar que esta pergunta levanta a questão do social e do particular. Do público e do privado. Nesse sentido há uma topologia que comporta um dentro e um fora como partes da mesma figura. Escutar a cidade significa ler o que aparece como sintoma social nesse lugar.

Pensar a cidade a partir da materialidade da linguagem e das narrativas de seus habitantes opera um giro crucial: saímos do lugar de escuta para a escuta do lugar. Na psicanálise, cada vez mais analistas se aventuram a atender nas praças públicas por exemplo, saindo do conforto dos consultórios.

Nos últimos tempos, a cidade tem sido lugar de catarse onde as mazelas latentes de seus habitantes escapam como fumaça branca por entre as rachaduras do asfalto. A psicanálise em seus primórdios foi nomeada como ‘método catártico’ justamente por dar espaço à fala ‘livre’, a fala catártica. Porém, hoje podemos levantar a questão sobre a catarse e a ideia de uma fala ‘livre’ na sessão, pois o analista em sua função de escuta pontua a fala supostamente livre.

A catarse opera em diversas situações (como numa conversa entre amigos) em que é colocado para fora aquilo que estava incomodando. Não raro há situações em que esta vem acompanhada por certa agressividade. Por si só, a catarse não produz efeitos esperados como em uma análise com a mudança na posição subjetiva.

Na cidade vemos a catarse como um dos efeitos do que estava difícil de lidar por uma parte da população. Configura-se como a liberação de um conteúdo que estava latente, que sufoca impedindo de respirar. Podemos pensar nos episódios mais recentes das estátuas em diversas cidades. Algumas, por exemplo, foram lançadas às águas do rio. Sem pretensão em entrar na discussão sobre o certo ou errado nesses casos, pontuo que a ação catártica aponta seus limites na ausência de uma mediação na linguagem.

De volta à cena das duas mulheres, convido o leitor a pensá-la como a ‘pequena violência’ do cotidiano em que a pressa e, não só ela, acaba por eclipsar a palavra. Sabemos que onde a palavra não circula a violência ganha espaço. Quantas cidades não viram palco de violência?

Paulo Endo (2) trabalha muito bem essa faceta da violência na cidade: ‘Não se pode compreender devidamente as violências em nossa cidade sem esclarecer, ao mesmo tempo, as concepções e desejo sobre o próprio corpo e o corpo dos outros’.

O choque entre as mulheres me fez pensar nos choques para além dos corpos. Choque de ideais, de crenças, de posição politica etc. A ausência de uma mediação faz com que prevaleça o ‘jogar (com) o corpo’. Pensei também que isso em outras cidades poderia ter outros desfechos como brigas, discussões, bate-boca etc.; no entanto, a ausência de palavras ou de alguma reação aponta para o atravessamento da cultura desse lugar nas relações.

Do que se trata, a mediação? De forma simples podemos pensar na entrada de um terceiro nos conflitos duais. A política entra como ferramenta potente para viabilizar o diálogo, pois o desafio dessa mediação é transformar o choque (violento) em um encontro (que é sempre desencontro). O impacto do encontro com o outro é o que constitui as narrativas subjetivas na cidade.

Num nível do discurso social poderíamos pensar a politica como a ferramenta que media os choques entre o eu e outro. Entre o sujeito e o coletivo. Universal e particular. Com a possibilidade do encontro com a diferença sem que vire necessariamente ação violenta. Mas nem a política dá garantias disso. Basta lermos o que Mbembe (3) aponta sobre uma necropolítica. Já Goldenberg (4) fala do aspecto da pulsão de morte na política a partir da revelação de um desejo de ‘eternização’ por exemplo, com o monumentalismo (estátuas), do culto ao líder.

O desejo em psicanálise não tem a ver com o estático do monumentalismo. Qual o lugar do desejo (movido pela falta) na cidade? Longe de fechar em uma única resposta, aponto para como cada lugar lida com as diferenças no intervalo entre eu e o outro. Na cidade, o desejo surge como desejo de rua. Ocupá-la aponta para isso: a cidade como lugar para a linguagem.

Por fim, defino este texto como um convite a pensar o espaço da cidade a partir de uma topologia em que dicotomias como dentro e fora já não são suficientes para pensar a cidade como discurso na relação com seus habitantes. Estamos em momento peculiar. Se antes as discussões giravam em torno da pergunta sobre como ocupar a cidade, nesse momento a pergunta é outra: qual é o possível de se ocupar a cidade?

Entre a catarse e o desejo existe um caminho que pode ser longo a partir dos tópicos pontuados: catarse, violência, política e desejo. Ler a cidade implica fazer um caminho que aponta para o desejo no espaço do desencontro.

(1) Lacan, J. Seminário 17 – O avesso da psicanálise.
(2) Endo, P. A violência no coração da cidade.
(3) Mbembe, A. Necropolitics.
(4) Goldenberg, R. Política e Psicanálise.

Mariana Anconi é psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Idealizadora do projeto itinerante ‘Diálogos na Cidade: Arquitetura, Cultura e Psicanálise’. Mora e trabalha em Nova York – EUA.