Memória institucional: como começar? Por Carolina Kuk.

No meu primeiro artigo para este OCI, intitulado ”Memória institucional, p’ra que?”, tratei dos 4 motivos pelo qual desenvolvemos projetos de Memória Institucional. São eles:

1) para reforçar identidade e reputação das instituições e suas marcas;

2) para servir de ferramenta de gestão de negócios;

3) para fortalecer os vínculos e relacionamento com diferentes stakeholders; e

4) para atuar pela responsabilidade histórica e social.

Conscientes desses motivos, animados com as possibilidades e interessados em colocar a mão na massa, muita gente me pergunta: – Como começar?

Há aquelas instituições com mais de cem anos de vida, muitas fusões e aquisições, muitos aniversários redondos comemorados, muitos produtos desenvolvidos a partir de sua história (tais
como livros, vídeos, exposições, brindes) e muitos, muitos e muitos documentos históricos reunidos de forma desorganizada, cheios de poeira, acumulados e abandonados à própria sorte num quartinho de depósito junto com cadeiras velhas e material de construção, e sem nenhum tipo de uso pós-efeméride (afinal de contas, todos têm medo de entrar neste quartinho em busca do que quer que seja).

Há aquelas instituições que, embora tenham trajetória consolidada e inúmeras histórias para contar, não fazem ideia de onde elas estão. A documentação histórica está por aí, dispersa nas gavetas ou nas cabeças de cada um dos funcionários e usuários.

Há ainda aquelas jovens instituições que querem começar do começo e desde a sua fundação buscam informações sobre como organizar sua história. Querem consolidar sua identidade e reputação, evitando assim que se percam nos passos dados no futuro. Nada na empresa tem cara de histórico – nada à imagem e semelhança do pergaminho medieval – e por isso fica mais difícil de identificar o caminho.

A primeira coisa que devemos fazer quando começamos um projeto de memória é desenhar o escopo. Vamos zelar sobre a história de qual instituição? Uma vez definido o escopo há de se atentar para o descarte ou doação de toda a documentação fora dele. Parece óbvio, mas cansei de ver casos em que parece guardar a história da humanidade ao invés da história da instituição em questão. Guardar tudo é não guardar nada. Um exemplo de definição de escopo de um caso da minha experiência profissional. O escopo é: história da Nestlé no Brasil. Pode ficar com documentação da história da Nestlé México? E da Nestlé França? Pode ficar com documentação da história da Unilever? E se for antigo? E se for bonito? E se for de uso corrente? E da história do Brasil? E da história do café? E da publicidade? Para todas estas perguntas, a resposta é NÃO (a não ser as duas últimas, cuja resposta é ‘talvez’).

Reserva técnica – Nestlé Centro de Memória

Também é preciso se atentar que centros de memória e arquivos históricos não são depósito. É preciso definir quantos exemplares de cada documento vai ser guardado. Usualmente de dois a três. Cinco não. Dez não.

Não é para guardar material de escritório de todos os departamentos, nem livros que sobraram do evento xis, nem brindes a serem distribuídos sei lá quando.

Outro ponto importante é que a documentação confidencial e sigilosa não deve estar nos projetos de memória. Talvez, esta questão seja discutível, mas, do meu ponto de vista, para que a história seja usada como ferramenta estratégica, os acervos devem estar disponíveis para consulta dos funcionários e parceiros e para que sirva à responsabilidade histórica e social, deve estar disponível para todos. Sendo assim, não cabe confidencialidade e nem sigilo.

Dito isso, pensemos nas instituições hipotéticas dos primeiros parágrafos. Comecemos da última para a primeira. A jovem instituição, após definir seu escopo, deverá fazer um mapeamento das áreas da empresa que produzem documentos históricos, sensibilizá-las para os usos potencias que elas podem fazer do acervo organizado e definir um fluxo de recolhimento da documentação.

Lembrando que, como explicitei no artigo anterior, documentos históricos são tudo que ajuda a contar a história da instituição: brindes, folhetos, troféus, apresentações, fotografias, cartazes, convites podem ser documentos históricos. Assim, o RH, o Marketing, a Comunicação, a Presidência, o Jurídico enviam a produção documental rotineiramente, no fluxo de seu trabalho cotidiano. Outra estratégia é o desenvolvimento de um trabalho de história oral, recolhendo depoimentos em áudio e vídeo de funcionários e parceiros sobre determinados aspectos e temas da instituição em questão.

O trabalho de história oral e o estabelecimento de um fluxo rotineiro de coleta de documentos históricos é uma estratégia que se aplica às três instituições hipotéticas do início do texto. Porém, a segunda instituição também tem documentos espalhados nas gavetas dos funcionários e em outros lugares que ninguém sabe quais são. Uma estratégia interessante que dá muito resultado é criar uma campanha interna de arrecadação de documentos (e, dependendo da instituição, também externa, para clientes e consumidores). Em 1982, o Bradesco enviou uma comunicação interna para todos os funcionários contando do projeto de fundação do seu Museu Histórico e pedindo a participação com o envio de documentos, o que formou grande parte do acervo que eles têm. Destinar um espaço de coleta de documentação histórica nos housekeeping anuais também surte efeito, desde que os funcionários sejam bem orientados sobre o que é o documento histórico institucional.

A primeira instituição, aquela centenária do cafofo entulhado, deve somar a estas estratégias comentadas, um trabalho intenso de organização básica do quartinho: abertura de caixas e limpeza, seleção de documentos interessantes para o projeto e encaminhamento de coisas desinteressantes.

Então, como começar? Defina o escopo, descarte ou encaminhe o excesso, estabeleça um fluxo de coleta de documentação histórica nas áreas, desenvolva um projeto de história oral, promova campanhas de sensibilização e doação de documentos, destine um espaço no housekeeping anual para a documentação histórica, organize o quartinho e, acima de tudo, sensibilize funcionários e parceiros para o projeto. É preciso que as pessoas estejam a par do que é a memória institucional, dos seus possíveis e incríveis potenciais e que sejam orientadas sobre o que é o documento histórico (tratamos disso no outro artigo). Elas são parte da história da instituição e também devem ser parte da construção do projeto de memória.

Depois disso vem higienização, descarte, estruturação de catalogação, catalogação propriamente dita, digitalização, acondicionamento, atendimento à pesquisa e desenvolvimento de produtos.

Ufa! Mas, conversamos sobre isso outro dia…

Carolina Kuk é historiadora formada pela FFLCH-USP, pós-graduada em Sócio-Psicologia pela Faculdade Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e especialista em Memória Institucional com atuação há 13 anos na área. Desenvolve projetos de organização e extroversão de acervos históricos, pesquisas sócio-históricas para projetos culturais, agências de publicidade e de pesquisa de mercado, ministra palestras e dá cursos sobre Memória Institucional.