Letramento social e Ilhas de acolhimento. Por Varda Kendler.

Era uma da tarde e Alex chegou ao trabalho bem prostrado. Ele teve uma consulta médica – pela manhã – que o deixou constrangido. A sala de espera estava cheia e a secretária repetiu, por várias vezes, em alto e bom tom: “Soraya! Soraya! Próximo exame de Raio-X é para Soraya!”.

Iniciou-se um bochicho no ambiente em torno de Alex.

Em seguida, foi almoçar em um shopping center e veio um recorrente momento de tensão: para qual toalete se dirigir? O feminino ou o masculino? Em qual deles haveria menor risco de agressão física e/ou moral?

Ao chegar na empresa, cumprimentou o novo porteiro, que o metralhou com os olhos ao ler o nome “Soraya”, em seu crachá, e ouvir sua voz de “boa tarde” mais firme, encarar sua barba e todo o seu corpo.

A esta altura, creio que você, leitor, já deve ter notado que esta estória é sobre transgênero. É um caso real (*) de uma pessoa que está em fase de transição de gênero e que, no relato, ainda não conquistou seu direito de ter seu nome social em todos os documentos.

Um ser humano real que sente, no dia a dia, segundo ele, “olhares zoológicos” e vigilância de gênero. Medo, agressividade, reprovação, nojo, julgamento, violência, assédio, piadas, risadas, deboche, zombaria e rejeição representam uma lista de sentimentos e situações que são vivenciadas em seu dia a dia. E esta lista não é exagerada. Não mesmo!

Neste espaço, minha lupa sobre diversidade e inclusão (**) está direcionada à identidade de gênero. Eu também poderia relatar circunstâncias similares relacionadas a etnias, classes sociais, faixa etária, gerações, pessoas com necessidades especiais (PCDs), orientação sexual ou crenças religiosas. Mas, no momento, estou mais sensibilizada com este grupo: LGBTQIA+ (***).

No campo organizacional, podemos trazer este debate para a reflexão sobre valores e cultura. Afinal, tem sido complexo para as organizações gerir pessoas e transformar comportamentos, trabalhar as diferenças e valorizar as características individuais. Inspirar a criatividade e a inovação, buscar um bom clima organizacional e alta performance diante deste contexto, com legitimidade. Um baita desafio!

Algumas organizações vêm investindo na sensibilização de sua liderança, em processos comunicacionais de conscientização do tema, em políticas mais inclusivas de gestão de pessoas, em programas de capacitação. Mas não tem sido suficiente. O movimento ainda é lento e nichado.

Para amplificá-lo, precisamos levar a discussão para mais espaços: a esfera pública, os influenciadores, as celebridades, as famílias, os colegas, as instituições de ensino (desde os pequeninos até os marmanjos!) e os cidadãos. Buscar iniciativas que se empenhem na educação, no diálogo, no respeito mútuo e no acolhimento social. Agir como indivíduos responsáveis, conscientes e coletivos.

Temos que nos dedicar fortemente ao letramento social e a ilhas de acolhimento. Estes termos me perturbam mais fortemente após participar, na mesma quinzena, de uma Roda de Conversa do TED Circles/TEDxSavassi e de uma Live do Comunica.MG – grupos sem fins lucrativos dos quais faço parte como voluntária -, e que dedicam-se a espalhar boas ideias e a desenvolver pessoas e profissionais.

Para concluir este texto, queria exprimir, na verdade, gritar, se me permitem: “Alex, conte comigo!”.

* Soraya/Alex: os nomes são fictícios, mas a pessoa é real, bem como as situações narradas e os sentimentos descritos.

** “Diversidade é convidar para a festa, inclusão é chamar para dançar” – Vernā Myers (ativista, estrategista de inclusão, catalisadora de mudança cultural, influenciadora, autora, advogada formada em Harvard e vice-presidente de estratégia de inclusão da Netfli. “Só”!).

*** LGBTQIA+: em minha modesta opinião, precisamos simplificar esta sigla. Está ficando confuso e excessivo esta sopa de letrinhas, o que complica ainda mais o tema.

Varda Kendler é mestre em Administração, com formação em Publicidade e Propaganda, e especialização em Marketing, Comunicação Empresarial e Gestão Estratégica da Informação. Tem experiência em empresas de grande porte em gestão da comunicação integrada, cultura organizacional e marketing. Atua como educadora, consultora e empreendedora.