Governança corporativa e o retrato de Dorian Gray. Por Luiz Antônio Gaulia.

A governança corporativa, em sua essência, busca estabelecer um sistema de regras e condutas, práticas administrativas e processos que garantam a transparência e clareza dos balanços financeiros, a prestação de contas frequente e confiável e a responsabilidade social e ambiental corporativa nas organizações. Podemos dizer que seu objetivo primordial é alinhar ao máximo os interesses dos múltiplos stakeholders – sejam eles acionistas, gestores, empregados, clientes, fornecedores e toda uma rede de interlocutores que influenciam e são influenciados pela empresa.

O pilar básico é promover práticas virtuosas e a prosperidade do negócio a longo prazo. No entanto, quando a desonestidade é a base ética na qual se operam as relações, temos uma aparência externa com uma cara e uma prática de bastidores com outra. Não é uma falta de ética, pelo contrário, é a ética da desonestidade comandando das sombras.

O fato é que esse modelo desonesto, ao permear as estruturas de governança, torna todo o sistema vulnerável, abrindo caminho para o declínio da organização. Não se pode enganar a todos o tempo todo: a verdade sempre aparece. Tivemos exemplos recentes no livre mercado e nas empresas estatais do Brasil. No caso das estatais, há um vício político de lotear ou ampliar cargos para satisfazer aliados de toda ordem – péssimo exemplo para a governança corporativa.

É nesse ponto que a obra-prima de Oscar Wilde, “O Retrato de Dorian Gray”, oferece um paralelo sombrio e eloquente. Dorian Gray, um jovem de beleza estonteante, faz uma espécie de “pacto faustiano”, transferindo os efeitos de suas ações – tanto as virtuosas quanto as depravadas – para um retrato seu. Enquanto ele permanece externamente jovem e belo, o retrato envelhece, se torna um espelho horrendo de sua corrupção moral, da farsa fugaz de sua juventude e beleza. Ou seja, a famosa embalagem bonita por fora, mas com produto estragado por dentro.

Ora, quantas corporações não desejam apenas ser vistas pelo seu lado belo, útil, imponente? Ou quantas lideranças executivas (ou políticas) detestam a transparência e apreciam apenas a maquiagem, o elogio? Isto, além dos conhecidos relatórios de prestação de contas ricamente elaborados pelos mestres da propaganda e da comunicação, mas incoerentes de fato com as práticas da gestão. Quantos gestores também não buscam tal condição, mesmo que recorrendo à mentira como alavanca reputacional, a um baile de máscaras?

A relação entre a governança corporativa e a ética da desonestidade reside na dualidade entre a aparência e realidade. Uma embalagem lindíssima por fora, mas, por dentro, alguma coisa estragada, que apodrece a cada dia. Uma empresa pode ostentar um conjunto robusto de políticas de governança, códigos de conduta e comitês de ética, projetando uma imagem de responsabilidade e integridade… no entanto… se a cultura interna e as ações dos líderes forem pautadas pela desonestidade, essa bela fachada de boa governança se torna tão ilusória quanto a juventude eterna do personagem Dorian Gray.

Assim como na ficção o retrato absorve as marcas da depravação de Dorian, as manipulações de contas, balanços e intenções desonestas, mesmo que inicialmente ocultas ou justificadas por resultados financeiros imediatos, corroem os fundamentos da organização e da boa governança. A falta de transparência, a manipulação de informações, o conflito de interesses não declarado, a maquiagem de contas por má-fé ou negligência com a conformidade a melhores práticas e o desrespeito às leis e regulamentos são como cupins a devorar a madeira na qual se vive e, embora não visíveis na superfície, estão enfraquecendo a confiança dos stakeholders e minando lentamente a reputação e o futuro da empresa.

Essa distorcida ambição estratégica, alimentada pela desonestidade intelectual, degradação moral e pela falta de compromisso com a verdade dos fatos da vida é análoga à busca hedonista de Dorian, que o cegava para as consequências de seus atos. No curto prazo, tudo parecia sob controle. Mas a desonestidade e a farsa se mostram insustentáveis.

O livro de Oscar Wilde nos adverte sobre a ilusão da impunidade. Assim como o segredo de Dorian eventualmente o consome, a mentira enraizada na governança corporativa inevitavelmente traz consequências negativas. A perda de confiança dos investidores, a fuga de talentos, as sanções legais, os danos à imagem e, em casos extremos, a falência, são o preço a ser pago pela erosão da ética baseada na honestidade, no compromisso com a verdade.

Em suma, a governança corporativa eficaz não se limita à adoção de estruturas formais; ela exige um compromisso genuíno com a ética e a integridade em todos os níveis da organização. A história de Dorian Gray serve como um lembrete sombrio de que a farsa, a hipocrisia e maquiagem aparente não conseguem esconder a corrupção interna por muito tempo. A imundície do corrupto tem um preço alto demais para ser pago. Não existe propaganda que dê conta de mentiras. A realidade de uma governança corporativa repleta de gambiarras e espertezas gritará mais alto que qualquer comunicação enganosa repleta de imagens lindíssimas, mas que não existem no dia a dia. Em algum momento o espelho se quebra.

Uma governança corporativa verdadeiramente confiável é aquela que se baseia em valores coerentes entre discursos e práticas, cujo compromisso é a verdade dos números, baseada nos fatos, da gestão pautada pela sustentabilidade e pelo trabalho honesto, na transparência genuína e na responsabilidade pelas decisões tomadas.

Que a governança das nossas empresas públicas ou privadas tenha real alinhamento com uma “imagem” que reflita sua verdadeira alma, evitando o destino trágico do belo e corrupto Dorian Gray.

Imagem: “The picture of Dorian Gray”: Warner Archive Collection – 1945.

Luiz Antônio Gaulia é professor do IBMEC e da UNIIBP.