A formação de professores e a transposição do conteúdo acadêmico para os saberes escolares. Por Aline Carneiro Silverol.

Série: ‘Professor 4.0’. Texto 2.

Podemos começar a nossa conversa com uma provocação: se analisarmos a formação de professores, considerando as licenciaturas, os cursos de Pedagogia, ou até mesmo a nível de pós-graduação strictu sensu (mestrado e doutorado), será que realmente formamos professores?

E por que a provocação? Porque há uma grande dificuldade na transposição de conteúdos por parte do professor, pois os docentes-formadores não ensinaram esse ‘movimento’. Ensinaram a teoria, alguma prática do mercado de trabalho, mas não a transformação do saber acadêmico em saber ‘básico e fundamental’ – e básico não significa superficial.

Vamos nos ater à licenciatura. O indivíduo conclui o seu curso, mas não se sente seguro ou não sabe como utilizar todo o seu conhecimento específico em sala de aula e, desta forma, baseia sua prática docente nos livros didáticos. As aulas tornam-se reprodutivas, mesmo com práticas pedagógicas ou outras metodologias mais atuais e, assim, perde-se a oportunidade de despertar o interesse e o senso crítico dos alunos.

As licenciaturas possuem uma carga horária mínima obrigatória de específicas, que são as disciplinas da área de conhecimento do curso, e uma carga horária mínima obrigatória de disciplinas pedagógicas. A resolução número 2, de 1o. de julho de 2015, do Ministério da Educação, alterou a carga horária pedagógica dos cursos de licenciatura e de formação de professores, talvez com o objetivo de ‘melhorar’ a formação docente, com aumento da carga horária total formativa, dos estágios supervisionados e das prática pedagógicas. Entretanto, as mudanças na carga horária não resolvem o problema da transposição dos saberes, simplesmente porque não há comunicação entre o núcleo específico e o núcleo pedagógico. A mudança seria algo mais profundo, e estaria ligada à estrutura curricular dos cursos de licenciatura e aos professores-formadores.

A falta de comunicação entre os núcleos pode ser uma das causas da dificuldade de transposição dos saberes. Durante a graduação, os alunos estudam disciplinas específicas que compõem a sua área de conhecimento, como Geografia, História, Química, Matemática, Física, Biologia, Letras etc., e estas disciplinas, na maioria das vezes, são ensinadas sem conexão com a educação básica (… mas não é um curso de licenciatura?). As disciplinas pedagógicas também não se conectam com o núcleo específico: as teorias, a legislação, as tendências, a didática, as metodologias e as formas de avaliação são abordadas de maneira padrão, sem considerar as especificidades das áreas e sem a conexão necessária para que o futuro professor possa ensinar o específico com suporte pedagógico.

A prática pedagógica e o estágio supervisionado deveriam funcionar como um elo de ligação entre os núcleos específico e pedagógico, na tentativa de mostrar, na prática, como esses núcleos interagem. Entretanto, o que se vê nas práticas pedagógicas são um estímulo mínimo à aplicação do conhecimento específico nas metodologias pedagógicas, ou vice-versa. No estágio supervisionado, os alunos, futuros professores, observam as velhas práticas e as aulas reprodutivas, ou, com muita sorte, alguma aula ‘revolucionária’ – sim, pensar fora da caixa em educação é considerado uma revolução.

Com relação aos professores-formadores, muito se discute sobre a experiência dos docentes na educação básica enquanto atuantes nos cursos de licenciatura. Óbvio que a experiência faz toda uma diferença, mas chamo a atenção para um ponto: se eu estou ministrando uma disciplina para um curso de licenciatura, o que eu posso fazer para que o aluno realize a transposição?

Como posso conduzir a minha prática pedagógica para que o aluno de graduação alcance esta habilidade em sua prática profissional? Ora, se isso acontece de forma corriqueira em tantos cursos, qual é a dificuldade nas licenciaturas? Pode ser que nós, professores-formadores, também não tenhamos sido preparados para a transposição.

Os cursos de pós-graduação strictu sensu formam pesquisadores e também professores, já que grande parte destes profissionais são e serão absorvidos pelo ensino superior, seja de instituições públicas ou privadas. Confesso que, quando eu penso na minha pós-graduação, em nenhum momento eu fui preparada para ser professora. Aprendi com o tempo, com os acertos e os erros.

O ‘clique’ da transposição aconteceu quando eu ministrei um curso de metodologia de ensino de História e Geografia para alunos do curso de Pedagogia – não se ensinava as especificidades das disciplinas para depois escolher a melhor metodologia para cada temática. Pensei: como um professor vai falar de relevo sem entender como o relevo se origina? E a resposta veio: não ensina, ele reproduz o que o livro diz. E, para o aluno, o relevo sempre vai ser um morro na beira da estrada! Triste realidade.

E quais seriam as soluções? Existem muitas ideias e propostas, mas que talvez fujam da urgência do tema. Sim, urgência, pois com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a sua atual implantação, muitos estados, municípios e instituições privadas estão correndo contra o tempo, buscando e ofertando cursos de aperfeiçoamento para que os docentes compreendam as exigências relacionadas à nova diretriz. E nos cursos de licenciatura o reflexo da BNCC no currículo e na formação docente como um todo demandará um certo tempo e vontade das instituições e dos professores-formadores em realizar as atualizações e ajustes necessários.

Todas essas questões vêm de encontro ao momento atual em que estamos vivendo. As novas tecnologias, a velocidade e a liquidez da informação e do conhecimento impõem um ritmo transformador para a sociedade, e a educação não foge a regra. A formação profissional, de maneira geral, está cada vez mais desafiadora, e o professor também está incluso nesta perspectiva. Será necessário uma grande mudança na maneira como formamos os nossos profissionais docentes, pois a forma como se ensina e a percepção do ensino pelo alunado também está mudando!

O ensino básico tem exigido uma maior proximidade com as novas perspectivas de mundo, o que eleva o protagonismo da escola no que tange à formação de alunos: não só as competências acadêmicas importam, mas também as habilidades e valores passam a fazer parte do processo para a formação de cidadãos críticos, independentes e autônomos. Este é e será o grande desafio das Instituições de Ensino Superior na formação dos novos docentes para a educação 4.0. Na verdade, o que temos hoje são docentes 3.0 em um mundo já à beira da quinta revolução industrial!

Como as instituições e nós, como profissionais e formadores, podemos mudar esse cenário?

Imagem – Pixabay (https://pixabay.com/pt/photos/professor-propriedade-3765909/).

Aline Carneiro Silverol, conteudista e professora universitária, é doutora em Geociências pela Universidade de São Paulo e uma apaixonada pela Educação e pela formação docente.