Espelho nosso, existe lugar como a nossa casa? Por Renata Quiroga.

O espelho reflete um raio luminoso em direção definida. O entendimento da felicidade como uma circunstância agradável e positiva, sobre a qual um estado mental repousa em deleite, remete à ideia de um indivíduo racional, alheio à escolhas privativas e independente do coletivo.

Do contrário, o indivíduo real nomeia-se no cenário das relações interpessoais como portador de decisões inconcludentes, apreciador de desventuras e dependente de um certo consenso de felicidade. O indivíduo mostra a que está sujeito. O ir e vir pelo direito de exercer sua condição humana desbanca certas ideias estatísticas de prazer, que entrelaçam variáveis genéricas de magnitude, intensidade e duração.

A transitoriedade concebida como peça de encaixe no mecanismo da satisfação pode clarificar o caminho de sua busca incessante de felicidade no formato de planície. Além do mais, espera-se achar a felicidade em algum lugar do mapa, encontrar o tesouro em qualquer dia desses por aí. Como reconhecer o caminho de pedrinhas que leva ao contentamento? Sem instruções cartográficas, seguindo apenas seu faro, o sujeito sente o primeiro aroma vizinho que o seduz para fora dos muros.

A precariedade da natureza humana de manutenção da própria vida, sem amparo de terceiros, faz o início da sua existência ser marcado pela absoluta dependência do indivíduo por outro que o tome por cuidados. A fundação relacional do indivíduo com o mundo externo já anuncia a necessidade do bom uso da mutualidade para preservação da espécie e para constituição da existência em teia. A construção da felicidade de uma pessoa é, absolutamente, entelhada com a felicidade das outras pessoas.

A grande cerimônia de inauguração da experiência social abre o laço da galeria dos discursos. Aloca o sujeito, civilizado e renunciado, na condição de substancializado de um outro sujeito para seguir seu rumo. Então, já é possível avistar um porto primevo de felicidade que elabora uma interpretação de gratificação e insatisfação alheia. A tradução do outro feliz serve de peça piloto para a edificação de sua própria organização de prazer.

O universo literário infantil fornece as personagens Rainha Grimhilde, do conto ‘Branca de Neve e Os Sete Anões’, e a Dorothy – do filme ‘O Mágico de Óz’. A conversa imagética entre ambas mostra a função conectora do reflexo entre os mundos de fora e de dentro. Qual resposta o espelho da Rainha poderia dar aos questionamentos de Dorothy?

O retorno do espelho informa ao sujeito Rainha que mesmo com toda a sua supremacia de beleza, sua imagem não tem nada só de si mesma, o reflexo de outros belos também a modificam. Assim como Dorothy também pode perceber que o vento abre a janela do nosso lar para franquear a entrada da imagem da rua. As duas personagens ilustram, em cenários diferentes, os mesmos atravessamentos de eventos externos em suas vidas.

Quem não foi convocado para a guerra seria bem mais feliz que os soldados que enfrentaram o ambiente bárbaro dos campos nazistas. A despeito da trágica experiência das batalhas, a parte mensurável certamente não torna todos os civis, necessariamente, pessoas com motivos para comemorações.

Nesta lógica dos parâmetros, pode-se entender a felicidade como objeto de um guarda-volumes à espera da chegada do seu proprietário para ser devolvido mediante apresentação de recibo. Nesse sentido de cofre, ser feliz é conter a vivência relativizada do outro e não o valor absoluto de sua própria felicidade.

Por outra perspectiva, a famosa festa em outro apartamento, na qual só tem música animada e bebida boa, inverte perigosamente a racionalidade da analogia eudaimónica elegendo um alto batente de comparação. A vida irretocável exposta no mundo da fama forja exigências externas potentes, podendo levar o sujeito às nocivas afetações no campo psíquico, face ao confronto com a frustração.

Os tempos de isolamento social realçam as cores do desenho do outro em nossa própria imagem. O quanto o convívio e as convocações excitatórias de retorno de satisfação abastecem o sujeito de felicidade. O confinamento exibe mais do que saudade da fratria disponível nos encontros, ele aprisiona a falta do indivíduo dentro de cada outro, preso em cada outra morada. Sentimos saudade de nós mesmos, do nosso eu que vive lá na casa dos amigos.

A felicidade cortada à francesa já se aproxima do prazer possível a ser servido e degustado em pedaços de momentos dispersos pelas tramas da existência. O sistema social une indivíduos que tecem os mesmos retalhos em colchas diferentes: abastecem-se mutuamente para fruição de seus prazeres mesmo em localizações intermitentes.

O quarto de hóspedes que um indivíduo aluga para o outro não precisa ser um cativeiro prestador de serviço dos desejos sombrios de seu locador. Em contrapartida, a contingência, na qual um se concebe do outro, decora cômodos arejados em espaços saudáveis de circulação de cada eu com as trocas afetivas de suas histórias.

A dialética espacial entre o eu e o outro descansa à sombra enquanto a linguagem marca a cadência do mesmo compasso entre o Samurai e seu sósia. A história da inscrição do discurso enxerga no ícone o grande modelo no qual o sintagma em formação deve seguir em cópia.

O sujeito, em simetria à sua língua materna, se constitui no outro, sem que um prescinda do outro, nem tampouco os impeça conferência de valor. Na contramão da tecitura mais rígida da estrutura linguística pode-se perceber o sujeito constituindo a similitude no dessemelhante, iluminando, justamente, o espelhamento da incompletude que habita fora de seu lar.

Renata Quiroga é psicanalista, coordenadora de Serviço Social, Psicologia, Psicanálise e Psicopedagogia – PSFP.