Com aproximadamente 30 km de extensão, a travessia Petrópolis-Teresópolis é considerada uma das mais belas caminhadas do Brasil. Só topei participar, porque estava apaixonada. Já acho ridículo as travessias serem classificadas por estrelinhas, de acordo com o grau de dificuldade. Porém, entendo. As pessoas precisam saber se estão ou não preparadas para o que vão encarar. Essa travessia tem cinco estrelinhas, o que faz os participantes se sentirem nos Alpes. Todos paramentados. Uma quantidade de acessórios assustadora. Dois guias e um grupo de 12 pessoas. Todos fantasiados, carregando mochilas com sanduíches, barras de cereais, água [único item que realmente fazia sentido], lanternas, facas, canivetes etc. Perguntei para o meu namorado:
— Temos dois guias com todos esses aparatos. Por que é que cada um faz questão de vir fantasiado de Indiana Jones?
— Silvia, não comece a questionar tudo, pelo amor de Deus.
— Tudo bem. Só acho meio ridículo. É uma caminhada. E não vamos fazer nenhuma escalada.
Começamos a caminhar. A cada 40 minutos, uma parada para contemplar a vista. Os 12 coleguinhas sacavam seus smartphones do bolso e filmavam, fotografavam. Alguns, ficavam satisfeitos porque o telefone ainda estava pegando e ligavam para seus entes queridos como se já estivessem em Tóquio.
Cheguei para um dos guias, tranquilamente, e perguntei:
— A trilha é toda sinalizada, não é?
— É.
— Posso ir subindo na frente? Vou devagar. Prometo.
Antes que o guia me respondesse, meu namorado me cortou e disse:
—Silvia, não podemos quebrar as regras. Não é seguro. O cara não pode deixar a gente seguir na frente.
O guia me olhou e disse:
— Ele já respondeu a sua pergunta.
Seguimos caminhando. Sim, até que a caminhada era cansativa. É uma subida forte. As paradas para contemplar a natureza não deixavam de ser um tempo para descanso. Eu só tomava água. Não consigo comer enquanto estou fazendo uma atividade física. O resto do grupo, em compensação, mastigava barrinhas.
Numa determinada parada, resolvi acender um cigarro. Ninguém abriu a boca. Para a minha sorte, um dos guias também fumava.
O guia se aproximou e disse:
— Você tem um excelente preparo físico! Você treina?
— Não. É pura ansiedade. Essas paradas estão me enlouquecendo. Não vejo a hora de chegar no tal abrigo. Aliás, me explique uma coisa. Chegaremos no abrigo, dormiremos por lá e, amanhã cedo, começaremos a descer, certo?
— Certo.
— Tem banho nesse abrigo?
— Tem, mas não funciona.
— Não brinca!
— O abrigo é precário. Não tem luz elétrica. Temos lampiões e um pequeno fogão a gás. Quando chegarmos lá, faremos um jantar. Penne ao molho pesto. Os ingredientes estão aqui, na minha mochila.
— Vocês só pensam em comer. Não consigo entender. Eu quero água para tomar banho, para escovar os dentes.
E lá vem Vicente [meu namorado].
— Silvia, relaxa. Quando a gente chegar lá, a gente sente.
— A gente sente o que, Vicente? Você pagou 400 reais – aliás 800 – para comer penne ao molho pesto e dormir sem tomar banho. Que porra é essa?
Chegamos ao micro abrigo. Neblina forte, chuva e muito frio. Todos os equipados largaram suas mochilas, que ocupavam um puta espaço. Eu e Vicente parecíamos dois entregadores de pizza. Não havia sentido investir muito para fazer uma travessia. O traje de motoboy funcionou perfeitamente.
O abrigo era um quarto com diversos beliches, um banheiro triste e uma cozinha mínima. Nossos 12 coleguinhas pareciam satisfeitos. Eu fiquei muda. Aquele capítulo de “Into the wild”, versão terra brasilis, me parecia patético.
O abrigo era uma merda. Porém, para a maioria, aquela precariedade faz parte das cinco estrelinhas. É o que eles chamam de perrengue. Todos fumaram baseados, todos comeram penne ao pesto. Óbvio que havia um infeliz com um violão para tocar Feira Moderna, do Beto Guedes. Todos dormiram nos colchões dos beliches, com cobertores de presidiários. Eu só pensava no banho. Um dos guias me disse que se ele abrisse um registro, do lado de fora do abrigo, havia um cano, que eu poderia usar como chuveiro.
— Moço, por favor! Não tenho medo de água fria. Pode abrir o registro.
Em meio ao bando, comecei a tirar minha roupa. Vicente pegou a toalha. Uma das mulheres me olhou e disse:
— Você vai mesmo?
— Vou!
Quando eu já estava só de camiseta e com a calça de lycra, Vicente me olhou apavorado e disse:
— Você vai ficar nua, aqui, na frente dessa gente?
— Vou!
— Pirou?
— Se ficar nua para tomar um banho frio p’ra cacete é pirar, pirei. O menor dos meus problemas é ficar nua na frente dessa gente. Ninguém aqui está preocupado com isso.
— Calma! Vou com você. Se enrole no cobertor. Você não precisa sair de dentro desse abrigo pelada.
Fomos. Tirei a roupa, Tomei o banho. Lavei até a cabeça. Ninguém sabe que banho frio, na hora, é a morte. Depois, esquenta. O corpo gera um calor delicioso. Vicente também tomou banho. Voltamos para o abrigo. Nossos coleguinhas estavam impressionados. Para quem não está acostumado a se meter em roubadas, um banho noturno, a sei lá quantos metros de altitude, é assustador.
Vicente escolheu um dos colchões e desmaiou. Eu tomei um Lexotan de 2 mg. Deitei ao lado dele. Estava agitada. Não conseguia relaxar para dormir. Havia um violão naquele inferno. Resolvi sair. Resolvi contemplar a neblina. Do lado de fora, encontrei um dos 12 coleguinhas. O nome dele era Hugo. Ele também estava sem sono e apelou para o conhaque. Hugo me disse que já tinha feito aquela travessia e que de tempos em tempos gostava de repetir o programa. Me pareceu ser um cara tranquilo. Junto com o conhaque, comia uma banana. Obviamente, me ofereceu um gole do Hennessy e eu aceitei.
De repente, ele me diz:
— Você é divertida. Gostei do espetáculo do banho.
— Você deveria ter me oferecido esse conhaque no momento do espetáculo.
— Pensei nisso. Mas achei que seu namorado poderia não gostar. Sou um cara muito reservado.
— Adoro pessoas reservadas. Me lembram uma amiga que sempre me diz que quem fala menos, erra menos. Não é o meu caso…
— Você é autêntica. Você está fazendo essa trilha porque seu namorado te convenceu. É um gesto bonito. Você é uma puta companheira.
— Me dá mais conhaque, por favor. Não entendo de bebidas. Mas farejo coisa boa de longe. Esse conhaque é bom.
— É muito bom. É nobre. Deixa os lábios dormentes e o corpo mole.
Opa! Chega Vicente!
— Silvia, estava te procurando. Está tudo bem?
— Sim. Tudo ótimo. Eu e Hugo estamos contemplando a neblina e a chuva, tomando um conhaque e conversando.
Hugo, educadamente, oferece o conhaque para Vicente.
— Não, ele não consome importados. Vicente é brasilidade. Sou punida por beber Coca-Cola, por fumar Marlboro, sou obrigada a ouvir Jackson do Pandeiro. A família dele não assiste filmes americanos. São todos doentes. Se ele quiser, num desses armários, deve ter uma cachaça artesanal, regional, não é mesmo, amor?
Vicente diz:
— Ela não deixa passar. Não tem jeito! Amor, deixa de ser chata. Eu te amo com Coca-Cola, com Marboro, com Pulp Fiction, com o que você quiser. Deixa eu dar um gole nesse conhaque, deixa?
Bom, ficamos os três, ali, bebendo e conversando sobre o que aconteceria se não parasse de chover. Hugo nos disse o seguinte:
— Se não parar de chover, nós não desceremos para Petrópolis. Não é seguro. Desceremos pelo mesmo caminho que subimos.
Vicente ficou indignado. Eu fiquei foda-se. E foi exatamente isso o que aconteceu. A chuva não cedeu. Eu não dormi. Às 6 horas, o guia apareceu e disse:
— Já era!
Explicou ao grupo o que Hugo já havia nos explicado e ponto final. Todos sentados, esperando a neblina passar, para começar a descer por onde subimos.
Travessia Teresópolis-Teresópolis.
Foi lindo. Dedo de Deus.
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Silvia Pilz é jornalista e escritora. Autora do livro Sem Vergonha na Cara, já foi colunista da Playboy, do jornal O Globo, e tem textos publicados na revista Piauí.