Basculho. Por Maeve Phaira.

Pulou como um gato para dentro do contêiner. De lá, só dava mesmo para ver o branco dos olhos dele, que brilhavam no escuro como os de um gato preto, um gato preto desses que a gente encontra à noite na rua. E as sacolas de lixo estavam sendo jogadas p’ra fora da lixeira, uma a uma, quando se espatifavam no chão, uma a uma, bem no meio da rua.

Era um cheiro de carniça, comida azeda misturada ao papel molhado, amassado, mofado, devido a ação de bactérias, fungos, parasitas, e mais alguma coisa difícil de descrever, era o cheiro da morte.

O gato-homem, homem-gato, sei lá, permanecia dentro da lixeira, ele não tinha janela, só tinha mesmo a rua, era onde ele vivia, nas lixeiras da cidade, mexendo naquilo tudo como se fosse um gato, um rato, não, não, era mesmo um gato, os olhos dele eram de um gato, brilhavam no escuro, como os de um gato desses que a gente encontra à noite na rua.

Alucinado, louco de fome, louco de frio, louco de medo, louco de dor, louco por um pouco de amor.

E o silêncio daquela noite sem Lua, mais o mau cheiro que vinha até a janela daquela mulher, aquele cheiro insuportável, podre, mais o gato-homem, gato-homem-gato, homem-gato, rato, sei lá, todos pintavam a noite dela de azul.

Era um tom de azul muito escuro, quase preto, era preto. E ela, a mulher da janela, de pele tão clara, tão fresca, tão limpa, uma maçã por dia, leite, ovos e iogurte, carne, legumes à noite, frutas à vontade, não entendia o que acontecia.

Mas além do mau cheiro, insuportável, além das cores, azuis-escuros, não, não, eram mesmo cores pretas, sujas, fedorentas, o gato-homem, homem-gato, rato, sei lá, trazia ainda outras nuances para a noite dela, a mulher da janela, de pele tão clara, tão fresca, tão limpa, a que não entendia o que acontecia.

Ele trazia um certo mal-estar, é verdade que era um mal-estar distante, afinal, tudo aquilo que acontecia estava lá na rua: o mau cheiro, as cores escuras, sujas. Era certo que nada disso fazia parte da sua janela tão clara, tão distante, e brilhante.

Mas as nuances de vida escura, suja, vida lambuzada, besuntada de escuridão e podridão se aproximavam. E o mau cheiro persistia, nas cores e nas nuances também, era o cheiro da morte que, aos poucos, estava chegando até a sua janela.

Ela, todos os dias, leite, ovos e iogurte, carne, legumes à noite, frutas à vontade.

Outro dia, ela saiu da janela. Não suportou o mau cheiro. “Que horror!”. A mulher de pele tão clara, tão fresca, tão limpa, desceu até a rua, queria entender o que acontecia, afinal, por que tantos gatos na rua, gato-homem, homem-gato, gato-homem-gato, ratos, não sabia o que acontecia, queria entender por que aquele mau cheiro vinha tão forte lá debaixo. O mau cheiro que fedia todos os seus dias saborosos: leite, ovos e iogurte, carne, legumes à noite, frutas à vontade.

À noite, ela já não dormia. Assombrada com tudo que estava vivendo todos os dias. E o café da manhã, leite, ovos, iogurte, frutas à vontade, já não lhe apetecia. O cheiro fétido era só o que ela sentia, a podridão tinha entrado nas suas narinas, depois, parece que surgiu até na sua pele, cabelos e unhas.

Ela que tinha a pele tão clara, tão limpa, tão fresca. Ela que não entendia nada, não entendia como tudo isso tinha chegado na sua vida, na sua janela tão linda. Ela, pele tão clara, e frutas à vontade durante todos os dias.

Mas o mal cheiro estava mesmo insuportável. “P’ra que janela, p’ra que janela? Que horror!”.

Então, ela desceu e pisou na calçada suja, que cheirava a urina, depois seguiu pisando na miséria da cidade, entrava e saia nas ruas, sujas, dobrava esquinas, e quanto mais ela se afastava da sua janela, mais escuridão encontrava nas ruas, eram tão sujas, cores e nuances escuras, sombras, gatos-homens, homens-gatos, gatos-homens-gatos, por todos os lados, até entender o que acontecia, entendeu.

O gato-homem, homem-gato, gato-homem-gato, não comia porque não tinha emprego, não tomava banho porque não tinha água, e não tinha água porque não tinha casa, e não tinha casa porque não tinha trabalho, e não tinha trabalho porque não tinha estudo, e não tinha estudo porque não havia escola, e não havia escola porque desviavam o dinheiro público, e desviavam o dinheiro público porque não havia justiça, e não havia justiça porque o mundo era assim mesmo desde sempre.

O gato-homem, homem-gato, gato-homem-gato pulou para dentro do contêiner. De lá, só dava mesmo para ver o branco dos olhos dele, que brilhavam como os de um gato preto, um gato preto desses que a gente encontra à noite na rua. E as sacolas de lixo continuavam sendo jogadas para fora da lixeira, uma a uma, quando se espatifavam no chão, uma a uma, bem no meio da rua.

Na janela, agora, apenas as cortinas, os vidros fechados, e o ar-condicionado ligado.

Pulou, novamente, ele pulava todos os dias, o gato-homem, homem-gato, o gato-homem-gato, como um gato no escuro desses que a gente encontra à noite na rua, alucinado, louco de fome, louco de frio, louco de medo, louco de dor, louco por um pouco de amor.

A janela amanheceu com os vidros fechados, o ar-condicionado ligado. Logo veio a noite. A janela anoiteceu com os vidros fechados, e o ar-condicionado ligado. As sacolas de lixo ainda estavam sendo jogadas para fora da lixeira, uma a uma, quando se espatifavam no chão, uma a uma, bem no meio da rua. O gato-homem, homem-gato, o gato-homem-gato aproveita e faz xixi na calçada, no contêiner, na árvore.

Depois, levou tudo o que queria, o que não queria deixou para os ratos, ele era o gato, o gato-homem, o homem-gato, o gato-homem-gato, mas pensava nos ratos.

Na janela apenas as cortinas, os vidros permaneciam fechados, e o ar-condicionado ligado.  Gatos-homens, homens-gatos, gatos-homens-gatos, e os ratos são pássaros no chão.

Referência / Imagem:

https://www.hypeness.com.br/2015/11/conheca-o-movimento-de-pessoas-que-vivem-e-se-alimentam-do-que-encontram-no-lixo-2/

Maeve Phaira: advogada, jornalista, escritora. Autora do livro Outono em Copacabana.