Violar a violência. Por Ana Paula Arendt.

É com muito gosto que encontrei um livro que considero de magnífico porte, ‘O CEP – os militares sacrificados pela má política’, na Livraria Ferin, em Lisboa, ano passado. Depois de respirar aqueles ares de livros bem selecionados que só as estantes antigas produzem, e de manusear um pouco dos linotipos medievais que ainda guardam nas gavetas, com a autorização do Dr. João Paulo Dias Pinheiro para bisbilhotar, achei o dito livro, de autoria de Dr. António José Telo e Dr. Pedro Marquês de Sousa. Pois estava folheando e pensando em ligar ao ilustre livreiro para que enviasse um exemplar sobressalente a um valoroso amigo e excelente Capitão-de-Mar-e-Guerra, hoje dedicado à política na Presidência da República, quando me detive em uma das frases da conclusão do livro. Contam os autores que, ainda que o Corpo dos Expedicionários Portugueses entendesse o que se passava no contexto militar durante o fim da Primeira Guerra Mundial, na qual saíram tão prejudicados, nada poderia fazer o CEP para deixar de se tornar o bode expiatório internacional, por parte de iniciativas da Inglaterra e da França, pois ninguém havia que simultaneamente entendesse do contexto político e do contexto militar. A seu ver, muitos expedicionários tiveram suas vidas desperdiçadas em combates desnecessários por essa razão.

A história de Portugal me parece muito rica e muito complexa, parecida em certos pontos com a história brasileira, embora fique a impressão de que tenha sido politicamente mais inflexível, quando do início do século XX, do que na realidade presente. É que me chama a atenção a paz e a tranquilidade que os portugueses gozam neste início do século XXI, e penso se essa situação muito favorável não decorreria de um certo reconhecimento tácito de excessos no passado, e da sabedoria de constatar o resultado de excessos decorrente: nenhum ganho…

Hoje nós estamos vivendo o inverso no Brasil: partimos de um começo de século XX cheio de tranquilidade e de novidades alvissareiras, mas chegamos ao começo do século XXI com uma espraiada polarização ideológica, com um atentado lamentável a candidato a Presidente, nichos de nivelação de opiniões diversas em muitos ambientes, sobretudo o virtual. Alguns alertaram que o Brasil inequivocamente estaria fadado a desembocar em uma arriscada empreitada totalitária, em função de ter assumido um Governo que, para os parâmetros brasileiros, demonstra de fato um perfil de extrema direita. Contudo, como os precursores de um futuro catastrófico procederam em suas críticas sem incluir esse cálculo na própria conduta, levantaram sobre si uma certa dúvida do eleitorado quanto ao exagero, pareceu-me. Afinal, se o risco de totalitarismo e de perseguições fosse tão inequívoco, por que estariam acusando um candidato que liderava as pesquisas, abertamente, sem nenhum tipo de restrição? Seriam mais corajosos que os guerrilheiros precursores que exaltam, os quais, cautelosos, criticavam na surdina? Na minha visão, ao menos pelo momento, considerando o aprendizado histórico, o maior risco de eventuais excessos parece continuar a ser o resultado típico: ganho nenhum…

É lógico que as astúcias do poder corrompem e deterioram, e muito me parece válido reconhecer que não apenas este, mas qualquer governo pode vir a desenvolver condutas questionáveis quando o poder permanece nas mesmas mãos durante muito tempo, e é preciso estar alerta. Quando cargos nos três poderes que devem se equilibrar vão sendo preenchidos apenas por entusiastas de um só governante, sem ressalvas, o risco de se cair no buraco de uma ditadura de uníssonos é sem dúvida grande. Portanto penso importante estar muito alerta aos desdobramentos e decisões no âmbito político, mas talvez as críticas desmesuradas tenham surtido um efeito positivo de moderação sobre as autoridades recém-eleitas e distribuído a representatividade sobre distintos grupos, ainda que sejam esses grupos provenientes de uma população cujas opiniões costumávamos jogar para debaixo do tapete, muito dissonantes daqueles que até então lideravam as políticas públicas. Mas nem por isso menos brasileiros.

Mas consola que com essa eleição e com a constituição do novo Governo vieram à tona discussões muito importantes para o meu País, em especial relacionadas à segurança doméstica. No Brasil, os dados do IPEA, nosso instituto de pesquisa e de desenvolvimento de políticas públicas, são bem conhecidos: mais de 550 mil mortes por violência em uma década, sendo que nos últimos anos as ocorrências relacionadas a confrontos com policiais estariam aumentando. Em parte a decisão do eleitor parece ter refletido essa prioridade na vida da população, de evitar uma realidade, ainda que diluída ao longo dos anos, correspondente ao patamar de um genocídio. Como as gestões anteriores tiveram 14 anos para resolver o problema, e políticas compensatórias não foram suficientes para curar a ferida, o tema de trazer novas abordagens menos tolerantes a criminosos acabou tendo uma grande disseminação.

E qual seria então a solução para reduzir o número de vítimas e de crimes praticados no Brasil? O que fazemos no Brasil de tão diferente, que nos conduz a uma situação limite entre a vida e a morte aleatória nas ruas, enquanto os portugueses, por exemplo, cuidam da vindima e leem sobre as novidades literárias, enquanto os outros países se dedicam à economia e às séries de televisão?

Talvez pudesse se argumentar que somos povos de natureza constitutiva diferente. Mas o brasileiro, muito mais miscigenado com os negros e índios, resultaria disso inerentemente mais violento? Pois se os racistas dizem que essas seriam raças supostamente mais indolentes, um argumento racista não se coadunaria com uma predisposição ao ato violento dessas populações. Podemos ainda constatar, sendo contra o racismo, que os países dos quais saíam ilegalmente os escravos, como Benim, o Togo e Gana, os quais abrangem a Nação Ewe, gozam hoje de uma sociedade consideravelmente pacífica. No país em que resido, o Togo, a população ficou estarrecida com a morte violenta de uma pessoa, ao longo do ano de 2017, publicada nos jornais (ressalte-se: apenas e contudo uma pessoa). E será que foram forçosamente deslocados ao Brasil os africanos mais violentos, ou justamente pelo contrário? Fato é que a cultura africana é muito rica em solidariedade e em atividades culturais de lazer que desenvolvem conjuntamente, de um modo inclusivo. Tampouco os índios brasileiros tupiniquins pareciam muito afeitos ao conflito, haja vista que, a despeito de tribos mais arredias e outras canibais, acabaram por se miscigenar ao longo das décadas posteriores ao descobrimento, e desenvolveram intercâmbios culturais com os portugueses, dos quais se supõe ter resultado nosso sotaque cantado, nossa cultura afável e cordial. Portanto, mais provável parece ser que a miscigenação tenha aliviado uma situação que seria ainda pior, a qual constatamos quando as populações não se misturam, como é o caso de culturas que guardam algum parentesco, mas se mantêm substancialmente autorreferenciadas na sua própria história, como o judaísmo e o islamismo. Ainda assim: se formos verificar as estatísticas de mortes por 100 habitantes em Jerusalém, verificaremos que estatisticamente contam com cidades muito mais seguras do que alguns países europeus.

O ímpeto de violência ainda me parece um grande mistério. Na Bíblia constam algumas respostas: o primeiro ato violento ocorreu entre dois irmãos. Abel preparou um sacrifício agradável a Deus, seu melhor e mais tenro cordeirinho, e Caim, uma parte de sua produção agrícola. Deus certamente, na sua condição de onisciência, deveria saber que riscos havia de produzir conflito, ao se elogiar um filho sem reconhecer o mérito de outro. Mas sendo Deus Pai, e não mãe, insistiu em sua espontaneidade de dizer a verdade, e deixou transparecer o que mais lhe agradava. O resultado foi o assassinato de Abel, por Caim. Ao julgá-lo como favorito, por ter merecido maior reconhecimento divino, ainda que momentaneamente, Caim se viu diante da insuportável realidade de ser preterido. Como punição pelo homicídio, foi condenado a bandolar por paragens ermas. Fica a dúvida: teria Caim cometido a crueldade de matar o próprio irmão, se Deus tivesse reconhecido ao mesmo tempo o mérito de seu sacrifício, como igualmente valoroso ao de Abel? E se podia salvar Abel, calculando que se instalaria um conflito de triste desfecho, por que Deus, sendo imensamente bom e infinito de misericórdia, não fez uma equivalente concessão?

Comento isso porque li notícias ostensivas, na qualidade de estudiosa do tema, sob perspectiva acadêmica, sem de modo algum exprimir ou debater posição de meu Governo, posto que se trata de um fato no noticiário. Pois me perguntei se esse impulso conflituoso de Caim parece prosseguir hoje também nos relacionamentos entre países. Como todos puderam constatar, realizar uma concessão ao povo judaico sem ao mesmo tempo reconhecer al-Quds (Jerusalém) como capital da Palestina aparentemente conduziu a um recente atentado em Nairóbi, no qual faleceram 21 pessoas, entre eles familiares de americanos, não sabemos se praticantes da fé muçulmana ou não. Pouco importa: a justificativa do grupo extremista Al-Shabab foi a de que o Presidente americano teria dado uma ‘declaração estúpida ao reconhecer Jerusalém como a capital de Israel’. Diante dessa realidade estarrecedora, de mortes aleatórias em um país africano, que não guarda necessariamente nenhuma equivalência ou qualquer sincronicidade com o Presidente americano, fica a dúvida: teria o grupo terrorista deixado de subtrair a vida de pessoas inocentes, se ao mesmo tempo o Governo americano tivesse ressaltado o mérito e a importância de contemplar também a Palestina, o outro país irmão?

Ou o ímpeto de violência depende do caráter violento, e não das circunstâncias políticas, sejam elas desiguais ou desfavoráveis?

Seguindo nessa reflexão à qual convido o leitor, observo que outros tipos de violência também parecem seguir uma lógica similar do atentado bíblico original à vida de Abel, sobretudo aquela violência relacionada à mulher. O homem não suporta ser preterido por outro, e como vingança, subtrai a vida da parceira, muitas vezes disso seguindo tirar sua própria vida, num gesto de loucura; lemos vários casos já no início deste ano. O pai bate na filha que o preteriu face à paixão por um namorado; o irmão ameaça a mocinha que preferiu viver por conta própria em outro país; o pai trata a filha adulta como paciente psiquiátrica por se ver diminuído em sua autoridade, ao ser preterida a sua visão de mundo.

O raciocínio do criminoso que comete latrocínio seria similar? Não suporta ver outra pessoa de maiores posses e lhe subtrai um bem e, em caso de resistência, lhe toma a vida?

E quanto ao racismo? Um ‘influencer’ brasileiro muito bem decifrou o cerne do problema de um caso aberto de preconceito recente, quando uma menina negra, filha de atores famosos, foi hostilizada por causa dos elogios que recebia diuturnamente dos fãs sobre sua beleza: a inveja da pessoa que a hostilizou, ao constatar que uma menina negra pode ser digna de merecer comentários positivos e elogiosos por aspectos físicos naturais do corpo humano que ela abominava. E não seria esse tipo de racismo a mesma violência que dominou o espírito do irmão bíblico preterido?

Se serão todos condenados a bandolar por terras ermas por Deus, como na alegoria bíblica, ou por consequência real necessária de condição fugitiva, pouco importa ao homicida e ao agressor esse raciocínio: pois a conduta de quem subtrai a vida sem mais, nem menos, parece se distinguir pela irracionalidade. E pela falta de certos entendimentos, de certas emoções: fé no poder divino de fazer surgir compensações futuras; desânimo quanto à capacidade de si mesmo de fazer algo que poderá, no futuro, render maior apreciação e ser gratificante; raciocínio de que circunstâncias difíceis jamais duram para sempre…

Há muito de Caim ainda em parte da humanidade: o ser humano que não suporta a rejeição, nem receber menos, que tem necessidade de algo no imediato, no agora. A inveja descontrolada, inconsciente, seria então a origem e razão intrínseca da violência? A necessidade de erguer um triunfo, quando os meios lícitos falharam?

As guerras me parecem sugerir isso. Muitas delas os historiadores concordam terem sido levadas até o máximo desgaste pela possibilidade de prevalecer sobre o outro e disso obter o prestígio decorrente, o domínio inequívoco sobre recursos, sob o qual se cristalizou o conceito de potência durante fases imperialistas do mundo. O domínio sobre recursos ou sobre um território poderia ser pensado e obtido de muitas outras maneiras, acordos, arquitetura de contratos, diplomacia, competições, concorrências, arranjos… Mas em certas ocasiões, os homens preferiram medir suas forças por meio do conflito armado, por meio da invasão de territórios em de suas retaliações em espiral, ao invés de repelir forças invasoras e dominar um território circunscrito por meio da autoridade política.

Exemplos no dia a dia que nos são muito familiares também nos mostram que ser preterido na vida pelos entes queridos produz situações de conflito que, se não controladas, conduzem a danos nessa competição em que se metem as pessoas por atenção, afeto e estima uns dos outros.

No Brasil, as políticas compensatórias implementadas pela gestão anterior, muitas das quais eram até então vistas como inequivocamente necessárias para garantir uma maior igualdade entre as pessoas, partiam de um pressuposto similar, de que a violência tinha origem em usufruir de menos direitos, em se outorgar menor status na sociedade a indivíduos pertencentes a minorias políticas. Em primeiro lugar entender essa nossa política, mantida ainda hoje, como uma prevenção à violência, parece-me ser uma linha de raciocínio que se fundamenta sobre uma premissa preconceituosa: pois por mais que constatemos que a maior parte da população carcerária no Brasil seja parda e negra, isso não significa que a população branca cometa menos agressões. E não se chegou a fazer um debate de maior profundidade sobre o mérito e a impossibilidade de alcançar uma igualdade completa, sobretudo em uma sociedade muito diversa. Os indicadores de igualdade melhoraram, mas os índices de violência continuaram indo de mal a pior… Aliás, enxergando concretamente, as maiores vítimas de violência sempre foram os mais pobres: compram um eletrodoméstico ou um carro, parcelam em diversas vezes, e sofrem muitíssimo em ter que pagar por um bem que é roubado, simplesmente não restituído pela polícia, que raras vezes consegue localizar as operações ilegais de venda de roubados, tendo em vista ter de lidar com casos mais urgentes e mais graves. De praxe registra e libera o assaltante, quando não há violência física envolvida, com o que o cidadão brasileiro se vê frustrado e, por sua vez, culpa a ineficácia do Governo.

Mas seria incompleto um estudo que atribuísse uma única e precípua razão, qual fosse, à violência. Na Grécia, Heródoto nos conta que a violência política em certos casos era preventiva, a ponto de ser cruelmente organizada em torno de oráculos. Assim, numa profecia autorrealizável, os Báquidas tentaram assassinar o filho de Labda, em função do oráculo de que ele se tornaria o pior de todos os tiranos que governaram Corinto. Sem conseguir matar o bebê, por sua mãe tê-lo escondido, tornou-se de fato o maior tirano até então: perseguiu coríntios, roubou fazendas e também vidas, pois considerava que a articulação em prol de seu assassinato, apenas na condição de uma criança, fornecia um panorama de crueldade e corrupção na sociedade coríntia a ser combatido.

Há de se considerar, ainda, os crimes cometidos em função da honra, atavismos e decorrentes de instintos, para os quais geralmente desfrutam os agressores de uma razoável tolerância, tanto maior é a primitividade das situações com que ainda se defrontam as pessoas nos ambientes menos urbanos. Afinal, como não reagir instintivamente a um assalto, ou quando um ente querido tem a vida ou a integridade ameaçada, sem ter passado por um treinamento? Como não ser tomado de fúria diante da flagrante queda do edificio de um relacionamento que se supunha existir? No Brasil ainda não existem treinamentos de segurança com vistas a capacitar o cidadão, enquanto criança, a lidar com essas experiências concretas do mundo adulto, das quais depende a sobrevivência. Existe a velocidade e a violência de reação, e como alguns casos parecem demonstrar, as autoridades em certos momentos não têm se preocupado tanto quanto deveriam em discernir reações espontâneas das calculadas. Não deveriam as autoridades brasileiras aliviar as circunstâncias já onerosas de quem se viu forçado a defender fisicamente a sua prerrogativa fundamental de dispor da integridade de si, do bem-estar dos seus, do seu patrimônio ou de um direito previsto em lei? Talvez falte examinar com maior detalhe como outros países lidam com o mesmo assunto, ainda que ocorra com menor frequência.

Uma das políticas públicas no Brasil que foram propagandeadas como um sucesso de combate à violência consistiu naquela aplicada em São Paulo, de aumento do efetivo e da circulação policial, combinado com lei de fechamento dos bares após a meia-noite, o que pareceu configurar uma resposta válida a um tipo de violência noturna, decorrente de brigas e catalisadas pelo calor de reações impensadas, as provocações nos bares. Parece que suprimir o cenário no qual os crimes aconteciam funcionou, em contrassenso ao que se poderia supor, haja vista a conhecida piada de se vender o sofá. A estatística de 30 mortes por cada 100 mil habitantes teria se reduzido para 9 mortes por 100 mil habitantes, em média, conforme os dados oficiais. Contudo, permaneceu a questão: se essa política de combater as circunstâncias nas quais atos violentos ocorrem é suficiente e foi tão bem sucedida, por que os demais estados brasileiros ainda não a copiaram?

Mas há a violência territorial, os conflitos que se instalam pelo domínio de um território, como o caso das favelas cariocas, e das gangues de jovens nos espaços ao redor de escolas…  E a violência política, para a qual certos códigos tentaram estabelecer melhores parâmetros de convivência, por meio de teias de reciprocidade e sincronicidade de retribuições, mas cujo resultado líquido não se comprovou ainda eficaz… Existe também a violência institucional, essa muito presente na forma e nas expectativas das relações de trabalho e constatáveis na volumosa quantidade de processos judiciais e administrativos que figuram a média geral. Conforme um jurista mineiro, girariam em torno de 1 processo per capita, num país com 1 milhão de advogados.

Hoje em dia as relações parecem se deixar permear por uma rotina de disputas, de prevenção e de punibilidade, ao invés de se voltarem para a conciliação, diálogo e esclarecimento. Cresce uma cultura de confundir a punição pelo Estado com a eficiência do Estado. Mas prolifera a violência institucional em ambientes competitivos nos quais as pessoas, possivelmente pela baixa autoestima, se entregam a uma perspectiva de que só é possível crescer profissionalmente e galgar passos profissionais em detrimento do bem-estar de outrem. A mídia acaba fortalecendo essa perspectiva, vendendo personagens cujas características ambiciosas e justiceiras seriam sinal de força. Teria essa abordagem punitiva a mesma origem da alegoria de Caim, numa inversão de papeis dos protagonistas? Estariam as pessoas buscando se reconhecer e ser reconhecidas forçosamente em um Abel, um favorito que logrou êxito e que reivindica ser salvo, mas se empenhando para isso em rotular, unilateralmente, algum infeliz desavisado de Caim? Talvez a melhor solução para esse tipo de inversão fosse a análise psicanalítica sobre a forma de se colocar e ver o mundo, a fim de evitar a violência parasítica, na qual a vantagem própria decorre de sugar a reputação do outro. Ou igual fórmula para prevenir algum tipo de fascínio sádico, em que se torna imperativo eliminar a importância do outro para que o próprio ego possa se tornar visível a si mesmo. Fato é que o mundo prossegue girando, e o que se aventava como um ganho imediato e triunfante, quando calcado numa injustiça, torna-se um ganho extremamente vulnerável.

Talvez por ser tão multifacetada, a violência, nas ruas, política ou institucional, continua sendo algo muito imprevisível. Uma coisa é certa: todos prefeririam viver em um ambiente mais estável, com um noticiário mais positivo, no qual os desgastes não conduzissem a desfechos e conflitos abertos inevitáveis, nos quais a violência, seja ela decorrente da natureza humana ou da falta de virtudes, se retroalimenta. Mas poucas pessoas se dedicam a construir a si mesmos sem recurso a esse expediente, a construir ambientes livres de conflito em suas tantas modalidades possíveis.

São muitas as situações de violência sobre as quais uma legislação relacionada a armas pouco ou nada interfere, mas que não tem sido ainda objeto de aprofundado debate e cobrança dos cidadãos. Eis neste artigo apenas ligeiras reflexões sobre algumas delas. A meu ver: se os cidadãos portugueses, que nos são tão caros e próximos, foram capazes de construir um país acolhedor e podem hoje gozar de uma atmosfera benigna, e se nossos irmãos africanos em certas regiões também foram capazes de produzir a tranquilidade, nós, brasileiros, igualmente somos.

Aos leitores deixo dois poemas, um deles publicado pelo Correio Braziliense, cujo maior prazer foi ter sido publicado por um poeta de imenso coração, o José Carlos Vieira. Nos versos abordo o caso no qual uma menina em seus quinze e tantos anos foi mantida em cativeiro, agredida fisicamente pelo pai com fios elétricos, e teve, além de marcas por todo o corpo, seu cabelo raspado pelo tirano paterno, porque teria supostamente a virgindade com o namorado (será que fizeram exame de virgindade?). Um juiz da Vara de Violência contra a Mulher, em Guarulhos, liberou e justificou o pai da moça, concluindo que a reação dele teria sido justo ato de correição; contudo curiosamente seu conservadorismo não levou a responsabilizar nem prender o namorado da vítima pela violência. Estaremos todas fadadas a arcar com o resultado da violência dos homens que deveriam nos proteger?

E, ainda, compartilho um segundo poema, em que tomei nota da reação inusitada de um amigo mais jovem, o qual havia sido vítima de violência na rua. Sua descrição do lamentável fato na data de seu aniversário me fez profundamente desejar mudar a cultura dos ambientes que frequentamos, pela qual nós também somos responsáveis. Contudo a surpresa: ao chamá-lo a se animar e participar ativamente da vida pública, criando iniciativas e interlocuções, ele deixou de responder.

Será mesmo algo quixotesco, ou uma obrigação mínima nossa, nos engajar em encontrar novas possibilidades de melhorar a segurança dos ambientes que frequentamos? As decepções vão acumulando e ensejam pensar em como inverter a polaridade da má vontade que desemboca em nossas tristezas, sem se tornar distante, num mundo por vezes violento… Em pensar como formar novas gerações menos indispostas. Talvez com poesia?

Um estudo sobre os homens violentos – Ana Paula Arendt

AQUELE HOMEM disse que as flores só podem ser brancas
Mas nasceu uma flor rosa.
Ele chicoteou a pobre planta
E raspou todas as suas pétalas.

Nasceu outra flor, vermelha.
E o homem violento
Arrancou a rosa vermelha de seu jardim.
As flores só podem ser brancas.
Ele não pediu flores brancas?
Apenas o vizinho antiético gosta de rosas vermelhas.

O juiz veio então ver a gritaria dele
O juiz concordou que as flores têm de ser brancas
Também o bispo longínquo comemorou a ideia do homem violento.
Não, as flores não podem ter outras cores
E é bom que todas voltem a ser brancas.

As flores nunca foram todas brancas,
Mas com essa atitude de correição do homem violento, há esperança.
Foi o que disse o bispo.

Ordenaram à planta que melhor seria não florir.
Ficaram sem flores, e suas dores não passaram.

As flores brancas não ornaram.
Coitadinhas!
Apiedaram-se os homens violentos.
Parte mais íntima delas não era totalmente branca…

Pelo menos,
No jardim do Éden, florescem todas as cores.
Mas os homens violentos se recusam a sorrir com isso.

Poema honesto – Ana Paula Arendt

O AMIGO gira o revólver no teu rosto
o desarmador não desarma
o defensor de direitos humanos espanca
a juíza não julga
o político fala
o marido trai
a feminina é profanada
a feminista se submete
a criança dorme sem a mão da Mãe
a Mãe chora
uma poeta sem verso de madrugada.
Pensa em você o Amor da sua vida
uma poeta com verso na estrada
a Mãe vibra
a criança sente a mão da Mãe na sua
a feminista refuta
a feminina sente
o marido ama
o político não julga
a Juíza fala
o defensor de direitos humanos então repara
o desarmador dança
o amigo beija com carinho o teu rosto
e te abraça.

Ana Paula Arendt, poeta e diplomata brasileira, escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’ do Portal OCI.