O indivíduo mínimo. Por Ana Paula Arendt.

‘O Itamaraty sempre teve uma missão muito importante para o Brasil e ele era, junto com as Forças Armadas, um órgão de extremo respeito para o nosso Brasil; temos que resgatar essa função. Havia burocratas muito qualificados lá, muito capazes de fazer um trabalho maravilhoso pelo Brasil, em posicionar o Brasil de uma maneira positiva’.

A frase é de um Deputado Federal recém-eleito, cujo trabalho muito admiro, seu nome não vem ao caso, pois raramente alguém aufere qualquer benefício em trazer nomes de atores políticos sem levantar um igual ou maior dano. Por ora apenas cito como o ‘Legislador’, porque a frase me fez refletir sobre a forma como é visto um funcionário exemplar do Governo brasileiro: um burocrata qualificado. Ressalvo não discorrerei sobre política externa fora de horário de trabalho: mas sobre burocracia. E nisto dou a deixa. O que é um burocrata qualificado?

Montaigne dizia que metade da palavra que alguém diz pertence a quem a pronuncia, metade a quem a escuta. Pois então palavras transmitidas iriam contendo essas proporções em metades, até que em um exercício de telefone sem fio, o sentido original da palavra se tenha perdido. Numa sociedade de meios de comunicação de massa não poderia ser diferente, um burocrata qualificado poderia ser elogio para uns, uma crítica para outros. Sendo impossível supor o que poderá ter quisto o seu autor dizer na acepção original da palavra, e relegando-lhe a metade sua, apenas sobre a minha metade posso dizer: soou-me familiar ao ouvido, a frase dita por um político, de que o Itamaraty é sobretudo um corpo burocrático qualificado. Porque já ouvi isso antes. Não quero com isso discutir a função do órgão, estipulada constitucionalmente e muito clara, de executar a política externa formulada pelo Presidente da República, até porque não me cabe discutir política externa; recordei-me apenas para pensar sobre assunto mais geral e de domínio irrestrito: a forma como vemos e auferimos a competência de alguém encarregado de função de serviço público.

A competência de um ator político, representativo, por oposição à figura do burocrata, decorre sobretudo do bom exercício de negociação, pois afinal, para obter apoio político, é preciso conceder apoio político. Inclui também a representação do eleitor, esta função mais divulgada, pois estamos em tempos nos quais entrou em moda a prestação de contas, a ‘accountability’ e a transparência; e também se recorda a expectativa de que o político esteja melhor informado que o cidadão comum, esse o fundamento da capacidade de liderar, indicar e antecipar caminhos nos quais as pessoas possam encontrar o que desejam. Na qualidade de cidadãos, o que desejam ? O bem comum, a eficiência do Estado, a justiça distributiva de dar a cada um o que lhe é devido; a proteção de normas que permitam ao cidadão construir em paz sua vida, sem ser executado ou preso arbitrariamente, sem ter seus bens subtraídos e direitos fundamentais suprimidos.

Por outro lado, quando se fala em política pública de Governo, desde um ponto de vista doméstico, pensamos em um reino distinto, onde encontramos os burocratas: funcionários capazes de organizar e executar o que um político, amparado pela legitimidade eleitoral, define. Nesse sentido talvez viesse a ponderação do Legislador, com o propósito de ressaltar a importância e a boa qualificação do corpo diplomático brasileiro em alcançar essas metas estabelecidas, a visão do político.

Uma perspectiva um pouco mais próxima do quotidiano decisório no Brasil de hoje talvez me levasse a uma conclusão diferente. Afinal, não devemos tomar o que consta estabelecido na letra da lei como um correspondente à realidade. Minha filha, num de seus excelentes trabalhos de filosofia que tive oportunidade de ler, discorria sobre a realidade desde o ponto de vista filosófico, quando seu raciocínio levou à conclusão de que dois mais dois podem não ser quatro. Ora essas, pensei eu comigo… Entendo perfeitamente que uma lei possa não corresponder à realidade, pois entre uma e outra se interpõe a sua eficácia; mas nem a matemática escapará dessa relativização? Não, muito distinto de relativização, minha filha me explicou e me recordou sobre o que aprendi dos meus estudos empíricos e epistemológicos: afinal, se eu juntar dois grãos de trigo, mais dois grãos de trigo, na matemática serão quatro grãos de trigo; mas se um pássaro engolir um dos grãos, serão apenas três, e não quatro. A matemática pode orientar nossa ação, mas não tem necessariamente implicações sobre o resultado que enxergaremos na realidade. Ela me convenceu, pois ‘a vida tem sempre razão’, já dizia o sábio poeta Vinicius de Moraes.

Assim, refletindo sobre o seu excelente ensaio filosófico, eu me pus a pensar que, de fato, intuitivamente todos sabemos que por mais que um defensor de direitos humanos venha a fazer longo e belo discurso sobre a importância deles e das instituições, isso não significa de modo algum que terá logrado qualquer êxito em respeitá-los em sua vida privada, ou mesmo logrado qualquer êxito na sua atividade profissional de defendê-los. Do mesmo modo, muito acostumados estamos a constatar que um socialista poderá ter esse nome em sua legenda, mas praticar política e concessões diversas a um sistema econômico capitalista, sem muito peso na consciência; que um libertário poderá por sua vez condenar ao ostracismo alguém que lhe discorde, pois muito comum se tornem optativos em sua memória os princípios que lhe justificaram assumir o poder, ao se deparar com as necessidades impostergáveis da manutenção da autoridade. Afinal, temos uma ampla margem de tolerância para conviver com as contradições entre o que se pensa como adequado e o que realmente resulta do que fazemos. Somos brasileiros. Como agravante temos ainda a intuição de que entre o desejo e sua realização se impõe a imprevisibilidade de muitos fatores.

Eis que aproximar o céu e a terra consta até mesmo no esforço Pai-Nosso: seja feita Sua vontade assim na terra/como no céu, ensinava Nosso Senhor, desde há mais de dois mil anos… Porque também naquele tempo, suponho, não devia ser uma tendência natural que os desejos, refletidos no céu, correspondessem automaticamente à realidade, na terra. Que dirá, então, num segundo patamar, que ambos, nessas duas esferas, correspondessem à Sua vontade divina, cuja natureza e forma é conhecida apenas pelos penitentes que d’Ele se dizem íntimos.

Mas afinal, a burocracia qualificada, capaz de reduzir o hiato entre o desejo do político e a realidade seria uma virtude dos bons governos? Países teriam logrado êxito em se desenvolver em função de burocracias mais competentes em cumprir com uma visão política de Estado? E, afinal, haveria uma visão de Estado, para que o burocrata pudesse se empenhar, para que os cidadãos de determinado país pudessem avaliar quando finalmente tenha sido alcançada, objetivamente, um resultado de reconhecido e legítimo interesse?

Ao político caberia captar a visão do que é desejável para seus eleitores (convenientemente mudando, sempre que necessário, de foco); ao burocrata, caberia executar os atos necessários para alcançá-la (e correr atrás de seu foco). E seria o diplomata um burocrata qualificado, dotado de capacidades mais amplas de assegurar que essa visão pudesse se realizar, no seu domínio de política externa?

O Brasil quer ser um país desenvolvido: quer ser como a França, os Estados Unidos, como a Finlândia, onde a renda é alta, onde as oportunidades não dependem de indicações, onde as mulheres gozam de maior igualdade e liberdade, onde há museus bem conservados e atividades culturais de alto nível; onde pertencer a uma universidade ou ter aprendido uma habilidade técnica confere prestígio em empresas, respeito internacional, autonomia, mobilidade e segurança. Como alcançar esse desejo, como realizar essa visão?

No entanto não é ao burocrata que fazemos essas perguntas. Sobre as tarefas necessárias para alcançar a visão do político, responde um Congresso Nacional acumulando cada vez maior número de assessores, técnicos, especialistas, uma entourage de Luís XIV, na qual o parlamentar, retoricamente louvando os princípios republicanos de igualdade jurídica, torna-se o rei, a estrela em torno da qual giram os servidores prontos para lhe oferecer subsídios. Para completar a ópera, dizem que a frente parlamentar monarquista tem menos assessores e usa menos financiamento eleitoral… Fato: do parlamentar de hoje se espera que ele não apenas aponte os caminhos, como também se responsabilize por assegurar que o poder executivo cumprirá a contento com a implementação de uma determinada política. E também à liderança do poder executivo, na figura dos mais altos cargos, cobra-se reduzir a disparidade entre o que se deseja e o que constatamos na realidade, aos cargos nomeados diretamente pelo Presidente.

Do burocrata pouco se espera, além de criar novos formulários, coletar dados e apresentar relatórios, dentro do seu horário de serviço. A sua politização e introdução em discussões sobre quais seriam os melhores caminhos estariam fora de cogitação; do burocrata se espera saiba manusear corretamente as ferramentas de trabalho, objetivamente.

Contudo o Legislador nos traz uma visão que contradiz o que constatamos na realidade burocrática: afinal, ele raciocina que o burocrata qualificado consiste na verdade em um diplomata. E que faz o diplomata? Apenas ocasionalmente preenche formulários. Assim como o político, o diplomata negocia, representa e informa-se. Sir Harry Wotton foi um pouco mais além com seu humor, nos fazendo chegar desde o ano de 1604 a sua famosa frase, de que um embaixador é ‘sobretudo um cavalheiro honesto, enviado ao exterior para mentir pelo bem de seu país’. Se bem os funcionários do Itamaraty são de fato lembrados pela sua boa qualificação, dotados de efetiva capacidade de executar e implementar a política externa, eles se valem de instrumentos múltiplos digamos, nem sempre convencionais, para entregar seus resultados.

Dessa olhadela na dinâmica que extrapola o serviço de escritório, a burocracia, podemos deduzir que a implementação bem-sucedida de uma política pública jamais se restringirá a seus aspectos burocráticos. Pois para concretizar uma visão de futuro será necessário convencer as pessoas de que o futuro sob construção pretendida é melhor do que o presente, que nele seremos mais felizes, que contaremos com os elementos que tanto desejamos: a maior empregabilidade, independência, liberdade, opções de cultura e melhor formação. E em um segundo momento é preciso também convencer interlocutores de que as ferramentas propostas para construir o futuro são indispensáveis, ou as melhores possíveis. Convencer as pessoas e produzir consensos não é um trabalho burocrático, mas um árduo talento. E feito isto, então se tem na diplomacia os seus mais preciosos resultados: a posição tomada, o endosso concedido, a aprovação que se rogou, a decisão favorável, o investimento.

No presente, contudo, o burocrata, a despeito de prontamente receber uma nova visão de futuro, não raro foge ao diálogo, essa etapa necessária do convencimento e do consenso, seja acerca da visão de futuro, sobre os melhores instrumentos necessários para atingir os propósitos que partilhamos em comum, ou a respeito das seguranças contra o risco em que a adesão implica. Na ausência desse diálogo, instala-se com frequência o conflito ideológico, relacionado à assimilação de discursos associados àquele ou a este partido. O medievalismo resiste, na figura da vassalagem; o vassalo, o burocrata, em sua trincheira, aguarda instruções de seu senhorio, o político de mais alto cargo que controla os recursos, a turfa, do qual recebe nomeações e a tranquilidade de ser mantido em função, para avaliar se irá ou não se empenhar na implementação de determinada política; e via de regra, a implementação se reduz a um estágio muito primitivo de comando : ‘preencho este formulário’, ‘elaboro esta tabela’, ‘copio e colo este relatório’. O que o burocrata oferece quando a sociedade lhe apresenta um problema? Uma resposta? Ou mais uma atividade burocrática?

Na verdade constatamos que raramente tem o burocrata a oferecer um resultado concreto: em primeiro lugar, porque não acredita que esteja incluído em suas funções esse dever moral de oferecer algo à sociedade, ao cidadão. Ele recebe instruções estritas, e seria demasiado quixotesco e piegas supor algo assim, na estrutura que hoje conforma a cultura na qual se insere o Governo brasileiro, dominado por regras, leis e portarias. Em segundo, porque não lhe é dada a chance de produzir algo por conta própria, na qual ele se veja engajado com uma atitude de servidor altamente qualificado; então como vislumbrar o prestígio disso decorrente? Desviar da forma como são habitualmente feitas as negociações e transmitidas as informações é visto com maus olhos, muito embora não necessariamente se afronte com isso a conduta esperada do agente público, de oferecer um resultado ao final positivo e concreto, uma resposta satisfatória ao que demanda o cidadão.

Teríamos herdado a hipervalorização da burocracia de nossa cultura lusa? Creio se engana quem assim pensa, pois se bem existem procedimentos e atividades de escritório para lidar com todo tipo de atividade governamental, eles são apenas parte de um macrocosmo de relacionamentos complexos, nos quais observo que os portugueses se autoconcedem muito espaço e discricionariedade, um tecido social no qual se exercem liberdade de pensamento e cobranças mútuas. Em Portugal, parece-me, a burocracia convive perfeitamente com o preenchimento do formulário e um convite à Madonna, pois resolvido o problema de restauração do Palácio do Ramalhete, poderão os funcionários brindar com mais alegria nas sextas-feiras.

Isso me faz lembrar de uma história que li num jornal há muito tempo, quando tinha 16 anos, do Departamento de Física Nuclear da USP. Se a minha memória não falha, reza a lenda que Enrico Fermi, um dos físicos mais prestigiados, o qual integrou o projeto Manhattan, quando jovem deu a conhecer uma de suas atitudes memoráveis, que posteriormente nortearam e fizeram vingar o projeto. Estava ele na mesma idade que eu tinha, em uma avaliação acadêmica, sem nada escrever, após duas horas sentado, quando o Professor, incomodado com a tranquilidade de Fermi, indagou se o aluno iria conseguir em tempo hábil responder à questão da prova. Tratava-se de oferecer a resposta da altura de um prédio, valendo-se de um barômetro. Para um ‘bom aluno’ secundário de Física, a resposta era evidente: utilizar-se da fórmula da pressão em função da altura. Para isso bastava medir a pressão do ar no nível térreo, medir a pressão do ar no último andar, e calcular assim a altura, com a fórmula decorada. Essa era também a resposta que o Professor esperava para conceder a nota; algo distinto disso seria possivelmente motivação para um zero. Afinal, de praxe nas escolas, para se dar uma nota, é preciso devolver o que se mandou que estudasse, e não necessariamente uma resposta que responda.

Mas o jovem Enrico Fermi nada tinha escrito ainda. Ele justificou sua hesitação: respondeu ao professor estar ainda em dúvida, pois havia três respostas possíveis. Curioso e surpreso com a tranquilidade do jovem, o Professor asseverou ao aluno que havia apenas uma resposta, mas ainda assim indagou quais seriam as três respostas possíveis dele. Ao que Fermi respondeu: em primeiro lugar, estava ele pensando em se utilizar de um guindaste e, após medir o barômetro com uma régua, ir utilizando-se da medida do barômetro ao longo de toda a altura do prédio para enfim, multiplicar o número de barômetros medidos e obter o total. Era uma opção trabalhosa e necessitaria de um guindaste, é verdade. Em segundo lugar, pensou em subir até o último andar do prédio, jogar o barômetro do topo exato do edifício, medir o tempo da queda até o solo com um cronômetro e então calcular, conhecendo a gravidade, a altura estimada. Apesar de ser mais fácil que a primeira opção, havia a desvantagem de que o barômetro sairia quebrado no final do exercício, havia esse porém. Portanto ele confessou contudo estar mais inclinado à terceira resposta que havia concebido: ir até o porteiro e pedir que ele lhe desse uma cópia da escritura que registrava a altura do prédio, em troca de um barômetro novinho em folha.

No Itamaraty, eu não poderia dizer como acontece a mágica, como sempre dois e dois são sempre quatro, sem deixar de resguardar o segredo da receita que, diga-se de passagem, ainda não conheço inteiramente; se bem, dizem, foram os franceses que inventaram a diplomacia moderna, seu passo-a-passo se encontraria nas memórias de Talleyrand, seu reconhecido fundador.

Fato é que a boa implementação de uma política, seja ela externa ou interna, vai muito além dos grandes orçamentos com que se habituou a classe política para alimentar a propaganda e comunicação político-partidária. Com um orçamento restrito, de fato jamais se poderia acusar o órgão responsável pela política externa de consonar com uma característica lamentavelmente presente em regimes populistas, tanto de esquerda e de direita: o péssimo hábito de produzir dados que deem a entender um êxito, na ausência dele. Na diplomacia, se uma negociação falha, certamente todos ficarão sabendo; se uma política encontra seus limites, por outro lado é permitido traçar novas abordagens. De modo que a propaganda e a comunicação apenas surgem como ferramentas de trabalho com pouco destaque, jamais finalísticas. Não poderia ser diferente, pois o trabalho diplomático incorpora uma visão de Estado, não visando necessariamente a um retorno eleitoral, mas a resultados favoráveis.

De modo que suponho contrastam muito, por um lado, a liberdade e a relevância da construção da personalidade do indivíduo, a ampla margem de ação e de escopos de atuação que ainda hoje encontramos no mundo diplomático, com as prerrogativas da atividade burocrática, por outro. A burocracia está sempre encarcerada em procedimentos muito específicos. As cobranças numa perspectiva burocrática ficam ainda de gume mais cego ; pois cobrar e acusar números irá adiantar algo, diante de um cenário no qual não se conhecem as possíveis correlações e os mecanismos que os farão produzir um melhor cenário?

No momento parece bastante clara uma tendência no Brasil de anular o indivíduo, a sua força criativa e a energia do seu pensamento, incorporando-o em um plano estratégico, associando suas funções a uma atividade de projeto pré-delimitado. Essa vem sendo nas últimas décadas a maneira objetiva como se supõe atingir um maior grau de profissionalismo, de modernização, de ‘gestão pública’. A especialização do funcionário o conduziria em tese a uma maior proficiência naquilo que faz; apesar de constatarmos não ser essa a realidade de modo algum. Pelo contrário, o funcionário que permanece muito tempo na mesma função acaba se acomodando à atividade tal qual ela é esperada e tal qual vem sendo apresentada; torna-se não raro possessivo quanto ao tema, impedindo que novas ideias circulem, veta regulamente abordagens que possam propiciar melhores resultados; e deixa de se enxergar como um sujeito ativo e responsável pela execução da visão maior de futuro, ao qual o político e as autoridades respondem.

A incapacidade do burocrata é odiosa; feito seu trabalho de compilação de dados e de redação de relatórios, ele então se dedica a apenas responder o que não pode ser feito, e logo descobre que o exercício do poder é tão menos trabalhoso quanto maior a quantidade de negativas ; tanto mais satisfeito parece ficar quanto mais informações retiver, quanto maior for a sua exclusividade de emitir juízos e pareceres sobre um tema, não raro adentrando vidas privadas, sob justificativa de ‘um protocolo’ do serviço público, que ele mesmo inventa para compensar sua falta de resultados. Encontra defeitos, trava sua própria ação e disso sobrevive. O burocrata não é burro, ele simplesmente detesta o seu próprio trabalho. Pois se o órgão público tem uma queda no sistema de informática, ele é capaz, mas ele não usa o seu laptop nem o seu e-mail pessoal para manter em dia a folha de pagamentos, porque isso não foi determinado, nem consta em portaria essa sua obrigação.

Por isso me estranhou que o Legislador definisse o Itamaraty como um corpo de burocratas qualificados; não pela pecha negativa com que a burocracia largamente é definida em termos gerais pelos cidadãos que com ela se frustram. Mas sobretudo porque um exercício exitoso de implementação de política pública, qual seja, envolve ir muito além da estabilidade e da especialização em tarefas segmentadas que a burocracia nos oferece. Um indivíduo cuja função é incorporada a uma rubrica de dotação orçamentária e é, senão anulado, reduzido à figura de um indivíduo mínimo. Viver e trabalhar em função de uma atividade sem pensá-la, sem incluir iniciativas próprias e individuais, em nada contribui para produzir uma solução satisfatória a desafios complexos, porque uma pessoa não pode viver sem propósito individual, sem um significado que ele próprio tenha se atribuído. A cultura de anular-se desmobiliza a própria força.

A ferramenta da diplomacia, por outro lado, supõe um indivíduo fortalecido, dono de um domínio de muitas generalidades. Raros são aqueles embaixadores que deixaram à posteridade grandes memórias sem ter se ocupado com problemas de naturezas diversas, sem ter tido oportunidades de encontrar seu lugar ao sol. O Embaixador que logrou êxito em construir a Biblioteca Nacional em Brasília, prometida há décadas e sem sair do papel, por exemplo, era antes assessor parlamentar e obteve trânsito em distintos locais. Isso não teria sido essencial para salvaguardar o não contingenciamento de recursos no meio da obra? Já um burocrata não disporia jamais de um acervo de contatos e pouco estaria preocupado em acumular ou fazer fluir um capital político e social, porque isso escaparia à sua função imediata estipulada em portaria.

Há uma tendência, sem dúvida, mesmo na diplomacia, sob o signo da modernização, de que a ampla margem de ação de um agente público venha a ser cada vez mais reduzida a um escopo de condutas esperadas, amparadas em portarias e em lei, às cartilhas de comitês. Contudo, quando isso se conforma em um obstáculo a manter as melhores tradições, não raro as atitudes vão se renovando e os valores humanos têm forçosamente de incorporar o que é essencial para atingir um propósito mais alto; para cumprir a instrução com vistas a obter este ou aquele resultado. Como será o burocrata do Brasil do futuro, do país que nós adquirimos com o nosso voto? Seja voto de convicção, voto nulo ou voto vencido… Refiro-me ao nosso voto coletivo, que resultou da soma de nossos votos. Não vejo os novos burocratas – que, digamos, são os mesmos burocratas – se pronunciando nos meios de comunicação, grandes ou de mídia social, sobre as melhores formas de combater o analfabetismo funcional; não os vejo apresentando casos de melhor êxito, nem comunicando soluções para que outras regiões possam obter rendimentos dos alunos correspondentes. Há oficinas e forças-tarefas noticiadas pelas assessorias de imprensa de cada ministério? A classe política rapidamente se adaptou e colheu votos por meio das mídias sociais, e o mesmo se aplica a toda a indústria do entretenimento e aos famosos escritórios jurídicos; contudo não vemos nas mídias sociais páginas das escolas, de turmas, ‘memes’ ou ‘testes’ de matemática, de português ou de ciências produzidos com atratividade, ao menos não que tenham sido concebidos por burocratas de Governo. Há raras figuras que possam inspirar alunos a aprender sendo cultivadas.

Um cidadão é constrangido por um gerente que se recusa a lhe prestar informação e o caso vem a parar na mídia. Mas não sabe o cidadão que pode reclamar junto ao Banco Central, onde há servidores que pensam e trabalham para garantir a eficácia dessa ferramenta, com capacidade de aplicar multas sobre a instituição financeira, que por sua vez irá fazer com que o burocrata se justifique. Fato é que os noticiários não parecem oferecer destaque nem buscar expor isso, pois nem mesmo os jornalistas parecem saber.

E qual seguimento podemos observar no que diz respeito às atividades que foram sendo iniciadas para manter e repor o acervo cultural de museus, teatros e outros espaços de relevância histórica, os quais a classe média e a classe dirigente tanto admira na Europa e nos EUA, com os quais nossa população sonha? Toda a mídia volta-se apenas para declarações da autoridade última, seus desdobramentos imediatos de desgaste político, pois até a própria mídia burocratizou-se, acostumou-se a fazer o mesmo ; vive em função da agenda oficial e de declarações informais… E as condutas dentro de cada órgão político parecem favorecer isso, sobretudo porque se teme a indisciplina, o juízo alheio; desenvolveu-se nos diversos recintos a alergia da incredulidade, quando acenam atividades novas; a suspicácia dos questionamentos de interesse próprio; a desconfiança permanente… A conjugação do eu proibida no trabalho, mas o ego sobrevalorizado com cargos. Quantas portarias proíbem e punem, e quantas portarias criam, permitem? Será possível resolver um problema proibindo e punindo, ou é necessário criar, permitir algo, para que um problema seja resolvido?

E sob a égide de desculpas da ausência de portarias dispondo que o indivíduo crie e permita, gerações vão transmitindo um vazio de resultados a outras, porque supõem que o bom serviço público não esteja fundamentado em boas ideias, em bons resultados que ele escolha e articule produzir, mas em ‘boas condutas’, na ‘objetividade do exercício em função’. O indivíduo, com receio de ter sua conduta exposta, segue cada vez mais proibido e punido; egos são expandidos para respirar na superfície da exposição, mas personalidades são atrofiadas nas profundezas da autoconfiança.

Em alta se encontra a pedagogia dos grandes traços filosóficos, as propostas megalomaníacas, estruturais, de excelente desenvoltura e nobre propósito, grandes discussões e embates sobre qual seria a ideologia mais nobre e mais justa, o discurso mais correto, mas os quais jamais se concretizam na realidade. Restringir-se a essas discussões estruturais lamentavelmente ainda não produziram em larga escala cidadãos brasileiros capazes de escrever melhor português, de calcular juros de suas dívidas, de associar-se para preservar áreas ambientais, nem mentes capazes de alicerçar argumentos menos maniqueístas. Pois nesse ínterim, na Alemanha, se registram patentes de produtos florestais e se recusa o supérfluo, em Israel 10% do PIB é produzido por ações voluntárias, e nos EUA bairros são construídos com esgoto e jardinagem a ‘leasing’ viável.

As frases de caminhoneiro galopam desvairadamente nas redes: ‘grandes pessoas debatem ideias, pessoas pequenas falam de pessoas…’. Não! Grandes pessoas produzem belos resultados, têm projetos de vida… Falar sobre grandes resultados e grandes pessoas pode inspirar, humanizar e mudar as coisas. Reconstruir histórias, valorizá-las e trazê-las à baila, evocar uma memória com respeito pode ajudar a entender que é possível fazer como indivíduo algo que antes não foi feito. Falar sobre pessoas positivamente pode produzir muito maior diferença no clima e na motivação do nosso ambiente de trabalho. E deixo aos leitores um pouco de poesia sobre a paranoia dos burocratas, sejam eles incompetentes, sejam qualificados…

A mão vazia, por Ana Paula Arendt

Uma simples mão vazia
Balança o texto,
A mão terna do burocrata.
Menos eterna, para sempre imediata,
Sua pluma oscila entre o ganho
E a espécie.
Ele repete tudo o que merece,
O burocrata estende a sua mão vazia –
Quer dizer como se dizia,
E não tendo dito, sua boca enche.
Mas a vogal não preenche,
O dito foi o que pareceu dizer?
A minúscula fonte de sentimento.
A mão vazia deixa de estender desprezo,
Esvaziada de juízos.
Incomoda-lhe a fidelidade.
O burocrata sente ao longe;
Assim protesta,
Com portarias profetiza.
Contra sua vida ele testa
Repetir o que não irá dizer.
Ele galga as lacunas em que não há poder;
Perscruta as não remidas necessidades.
Responde apenas à sua própria vontade,
Está mergulhado em sono profundo
E produtivo.
Páginas, tabelas, sob crivo,
O burocrata então lhes empresta
Empresa.
Empreendendo sua mão vazia,
Ele oferece a firmeza
De dizer nada.
Estendeu a sua mão vazia,
Inveterada,
e eu lhe pergunto:
por que a estendes,
se nada ofereces?
Então se recolhe em crisálida,
E de tão imóvel,
Sai de seu casulo
O burocrata-mor, de senso estratégico,
Promovido com adjetivo,
Ele mesmo se diz o fruto.
E novamente a mão vazia
Estendida no minuto,
Uma capacidade de estender nada
E dizer com isso que não há coisas necessárias –
da parte dele.
Ele prova, lambe sua própria mão.
As maiores arras vivas de que é um
Burocrata excelente.
A sua foto de currículo
Mais igual que as outras.
Cai o político,
Rede das tensões e refluxos,
Tudo mantido e nada dito,
Derrubado.
O burocrata provecto olha-se no espelho,
Desenha sua silhueta no vapor do vidro.
Uma silhueta mais igual que as outras.
Comemoram-lhe o trunfo;
a vitória do nada sobre as promessas
que hão de parecer a resposta,
mas seguem jazendo.
O novo político vem.
Aperta a mão estendida, vazia,
E o burocrata não entende.
Lambe a sua própria mão,
Para sentir o sabor do político e dizê-lo,
Até que possa enfim,
sozinho, no banheiro,
relaxar o braço.
Aposenta-se. Enfim poderá
viver a verdade.
O burocrata foge,
Corre pelas ruas,
Deixando para trás
O acúmulo de vazios,
Empurra um carrinho de mão
Com o qual irá viver suas propostas.
O carrinho de mão está vazio.
Deve ser o hábito.
Tropeça na guia,
Cai sobre o carrinho de mão,
Já não está mais vazio,
Mas ao menos também agora
ele é a proposta.
Enterram-lhe e gravam a lápide:
‘Aqui jaz o mais garboso de todos os burocratas’.
Em um túmulo basto mais igual que os outros.

Ana Paula Arendt, poeta e diplomata brasileira, escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.

Imagem: Jean-Baptiste Debret.

Ressalva: os trabalhos sob o pseudônimo Ana Paula Arendt pertencem ao universo literário, refletem ideias e iniciativas da autora e não necessariamente posições oficiais do Governo brasileiro. Estes trabalhos literários buscam estar em consonância com os valores e princípios da Política Externa Brasileira relacionados ao diálogo, à dignidade humana, ao desenvolvimento e aos direitos fundamentais do indivíduo. A autora está sempre aberta a sugestões e críticas. www.anapaulaarendt.com