As armas da ignorância. Por Ana Paula Arendt.

‘A criança acredita em tudo que ouve; o adulto acredita em tudo o que fala’. Paulo Grinspun.

Quando completei 12 anos, meus pais me contaram uma novidade: eu poderia ir aonde eu quisesse, desde que avisasse. Aquilo pra mim foi uma novidade imensa. Adorava andar de ônibus com meu pai e de bicicleta, com meus primos e com um de meus tios, o qual nos divertia muitíssimo. E agora eu podia fazer isso sempre que quisesse. Dava uma sensação nova, andar sozinha. Olhar as coisas no meu tempo, com a minha perspectiva.

Então lá fui eu pela cidade, de bicicleta, mesmo, porque de minha casa até o centro eram 20 minutos. Conheci todos os museus. Isto é, dois. Foi impressionante descobrir que toda a Amazônia era parte do oceano, há milhares de anos. E descobri a Biblioteca Municipal. Ia todos os dias à biblioteca e na volta passava na catedral. Nunca havia ninguém e eu gostava de rezar na paz daquele silêncio agradável. Ali eu refletia sobre as leituras, caminhando meio aos vitrais. Outras vezes ia até o mirante, e via o pôr-do-sol no Rio Madeira. Certa vez fui atropelada: eu achava que haveria tempo, porque vinham carros na avenida principal, de modo que o motorista não poderia fazer o cruzamento, e pensava que ele havia me visto. Ele estava parado, havia me olhado, mas não havia me visto. E mesmo havendo trânsito, prosseguiu. Caí da bicicleta. Ele veio me ajudar, disparou muitas acusações contra mim, como fazem os homens e mulheres que têm maior responsabilidade. Eu não falei nada. Não havia me machucado, felizmente, e disse para ele se acalmar. Ele se acalmou. Segui meu caminho e pensei comigo: na mínima dúvida, quando eu tiver de ponderar, não devo prosseguir. Sabia disso, mas havia relaxado. Felizmente a vida nos treina e desde então nunca mais tive acidentes de bicicleta. Como motorista, nunca me vi tampouco na necessidade de ultrapassar os 80, 90 km/h, acredito que porque aprendi assim, é de família: sempre ter tempo suficiente para reagir e frear.

Um vez na biblioteca, me chamavam de ‘astronauta’, porque eu sempre pesquisava livros de astrofísica. Havia um ou dois apenas, de pouca qualidade. Todos os dias eu chegava e perguntava: alguma novidade? E o bibliotecário ria alto, dizia que eu era uma ‘figura’. Ele ia na estante, pegava qualquer coisa, e me dizia: ‘leia isto aqui’. E me levava para a seção reservada da Biblioteca, onde ficava a coleção do Júlio Verne, naqueles volumes antigos encadernados. Na verdade, a figura era ele, porque era homossexual, ao menos nos modos, e isso era ainda raro naquela época. Éramos bons amigos, já que, embora por razões distintas, éramos igualmente ‘figuras’, e às vezes ficávamos apenas olhando o movimento sem dizer nada. Apenas bons amigos fazem isso. Eu bem me lembro que, sendo habitué do local, ele sugeriu que eu desse uma entrevista sobre a reforma da biblioteca, que estava demorando mais do que esperado. Eu estava de vestidinho florido azul, que minha avó havia feito para mim, e com aqueles óculos desalinhados. Disse qualquer coisa otimista. Depois me vi e me ouvi: que coisa esquisita, a própria voz, quando gravada…

Mas depois de ler o que havia de Júlio Verne, Dostoiévsky e Dumas, eu tinha de me contentar com os pensadores clássicos e escritores célebres. Devorei Aristóteles, Platão, Espinoza, Thomas Morus, Santo Agostinho, Kierkegaard, Locke… Eu ia lendo pela ordem na estante. Os filmes eu já tinha visto; meus livros já tinha lido; não havia rapazes que me encantavam; não tinha nada melhor para fazer. O meu favorito era a Cidade do Sol, do Tomás Campanella. Eu gostava naturalmente dos livros encadernados com arabescos dourados, supunha que algo deveria haver de especial ali, para que alguém se desse ao trabalho de fazer uma encadernação com tanto zelo. Quando Jostein Gaarden lançou o ‘Mundo de Sofia’, lá estava meu bibliotecário favorito com o livro na mão, me aguardando, com uma pose. Fiquei cética, mas era um bom resumo em forma de aventura psicológica.

O que eu mais aproveitei dessas leituras talvez não tenham sido as leituras em si, necessariamente, muito prazerosas, é verdade. É sempre muito gratificante conhecer o pensamento de alguém que se dedicou exclusivamente ao ofício de pensar, ainda que a obra tenha ficado fora de época. A elegância. Mas havia também uma riqueza secundária em ter lido, pois passei a me dar conta de como as pessoas utilizam mal essas referências: citam para comprovar e legitimar seus argumentos, supondo que os seus interlocutores não leram ou não dominam os clássicos. Ter lido pessoas que buscaram a Verdade me fez de certa forma me fez sentir resguardada do sofismo, embora muito mais me parecesse eficaz receber bênçãos dos avós, dos pais e dos mais velhos. Já na academia diplomática, o meu Diretor, muito devidamente paranoico em se ocupar da nova geração, não se cansava de se desgastar e de repetir ad nauseam como identificar e escapar de sofistas e de suas manobras irresponsáveis, especuladoras.

Antes disso me surpreendi, quando cheguei na universidade. Professores e alunos citavam esses autores clássicos e eu logicamente os reconhecia, mas enfatizavam aspectos que para mim, numa primeira leitura, me haviam parecido menos importantes. Era necessário rotulá-los, diferenciá-los uns dos outros; e consenso havia, parece-me, em dar uma atenção excessivamente superficial ao que os diferenciava.

É fato que, por vezes mesmo sendo mestres e doutores, os docentes e alunos nas bancas, arguições e debates imputavam aos grandes autores raciocínios estranhos, parece-me, e soavam ainda mais intransigentes, ao não se valer desse conhecimento para dialogar ou imaginar, mas para ‘sobrepujar’ o discurso do outro, supondo serem seus únicos donos. Os homens e também mulheres são muito assim, ciosos de defender o domínio de um ambiente, estabelecendo território por meio da submissão opinativa dos pares… Mas um grande filósofo, eu deduzi depois de ler quase todos, era sobretudo alguém que amava o conhecimento e que não se furtava de entrar no mérito de seu raciocínio, que primava pelo domínio de um território que ele próprio criava. O momento do debate era quando o sábio podia junto a si desenvolver novas linhas de argumentação, citar suas pesquisas em profundidade e testar a solidez de seu pensamento… Em suma, desenvolvê-lo, enquanto o ignorante ficava estagnado nas suas próprias convicções.

Foi Schopenhauer que disse isso? Suspeito que sim. Fato é que nunca memorizei o que disse este filósofo e não aquele; para mim tudo era um apanhado só, sobre temas distintos. E convenientemente ignorava o que um ou outro dizia sobre as mulheres. Algum deles, talvez me recorde, disse também dos perigos e inutilidade de se querer arguir com alguém que não preza o conhecimento, mas visa a algum objetivo que escapa à filosofia, para quem o cultivo do conhecimento é tarefa menos importante. Aliás, por que outra razão os leitores depredavam os livros, sublinhando com caneta, lápis as grandes obras? Para algum uso espúrio, eu reclamava comigo, que não o de construir o edifício de si mesmo.

Depois acabei aderindo à prática de sublinhar livros meus: porque era necessário identificar o que ‘determinavam’ os autores da bibliografia, para ser aprovada nos exames. Foram anos de grande pobreza intelectual e revolta interior. Raros professores eram, além de professores, mestres, que com humildade de mestres nos permitiam ir além deles, exigindo que apresentássemos o nosso pensamento com espontaneidade, para identificar se a leitura havia feito nossa percepção evoluir em algo; poucos acolhiam a experiência concreta que traziam os alunos e sua relevância efetiva para ampliar a perspectiva e abranger múltiplos desdobramentos. A maior parte apenas exigia que soubéssemos reproduzir com precisão o que um autor disse e que disséssemos com fluentes abstrações, imitando um discurso que àquele ou a este autor fosse atribuído.

Isso também me ensinou a humildade: muitos aspectos do que os autores mais celebrados escreveram me haviam passado desapercebidos. E me pareceu ao observar a gente acadêmica, que, no fundo, cada filósofo é uma construção, ao redor da qual as pessoas vão e vêm, plantam e colhem… Evidente a imensa responsabilidade daqueles autores em governar os desdobramentos do que diziam e conferir um sentido plausível. Na impossibilidade, fascinada fiquei com a epistemologia, verdadeira medicina dos filósofos amáveis.

Eu apenas recordo disso aos leitores pelo seguinte: no meu recesso e périplo intercontinental de quem trabalha num lugar, mas tem filhos residindo em outra parte, passei com eles por uma cidade italiana no meio do caminho que fazíamos, que se chama Longarone, nos alpes italianos, meio ao trânsito de uma escala. Em 1963, me contou o motorista, que é daquela região, aconteceu ali uma grande tragédia; os responsáveis pela barragem ignoraram sinais de ligeiros tremores numa das partes do monte Toc. O resultado foi o rompimento da barragem e a morte de cerca de 2 mil pessoas. Enquanto passávamos por ali, ele me contava que na verdade estávamos nos movendo sobre um cemitério humano, pois não havia sido possível encontrar muitos cadáveres. Havia de fato um silêncio muito grande, a despeito do movimento urbano.

Aquilo me fez arrepiar e sentir uma certa falta de ar, com certeza. Além disso, no meu País as pessoas estavam exatamente onde eu estava. Um encontro triste com minha Pátria, num lugar independente do espaço e do tempo. Mas não havia muita margem para o horror, porque tendo sido tão simultâneo o momento em que se debatia sobre o acidente em Brumadinho, reprise de Mariana, instantaneamente me pus a refletir.

Indago: qual é a razão pela qual as pessoas investem milhões de dólares em mecanismos diversos de segurança, em órgãos supervisores de inspeção, apenas para ignorá-los quando esses mecanismos de segurança e pareceristas eventualmente dão o alerta crucial? Como explicar e compreender tragédias dessa dimensão, nas quais apenas há perdedores, quando podiam ter sido evitadas? São imenso prejuízo para as empresas responsáveis pelas construções; são ainda maior prejuízo para as autoridades responsáveis pela sua inspeção, porque a falha implica no total desprestígio, para uma vida inteira. São também uma fonte de crise que desencadeia ônus e culpa em outros territórios, a qual jamais se perde, sempre se acumula, quando muito se transforma sucessivamente, com sorte, se dissuadem… Não há, racionalmente, nenhum incentivo nem nenhuma explicação para que consciente ou inconscientemente, uma autoridade ignorasse um alerta de risco em uma represa. Por que escolheram ignorar, os homens e mulheres, o risco? Por que não evacuaram o local, após constatar o risco?

Depois de pensar um pouco, cogito: talvez não atribuam as autoridades tanto valor à vida humana? Acho difícil, porque geralmente vivem ao redor parentes e amizades. Talvez a explicação para essa falha humana em buscar falhas para ignorá-las repouse mais na forma como as pessoas são ensinadas a pensar. A crença na infalibilidade de si mesmo e de que o mundo externo depende exclusivamente da vontade interna decorre desses maus hábitos que vão sendo perpetuados desde o berço e tolerados nas escolas e universidades, desde sempre. Excetuadas aí as escolas brasileiras de guerra. Mas em geral, acostumado a acreditar em tudo que fala, o adulto, mesmo sendo engenheiro e dominando toda a técnica de uma construção e da fala, mesmo tendo dedicado empenho com afinco para prover todas as ferramentas necessárias para prever e antecipar desastres, recusa-se a acreditar em algo que lhe pareça contraditar os humores de si próprio e de seu ambiente, de sua rotina, de suas práticas. A celebração da ignorância nos debates estudantis, o pensamento guiado para atender a uma exigência formal… Eis fatores que acabam por nos fazer prisioneiros do lapso coletivo, é o que me parece. Quando transposta para o ambiente de trabalho, uma falta de rigor consigo mesmo, a baixa inclinação ao dissenso e o pouco receio do risco podem conduzir a verdadeiras tragédias. Muitas vezes é preciso ter dúvidas.

O Titanic foi o auge e a epítome de um pensamento viciado, é de conhecimento popular. Mas desgastou-se e empobreceu essa metáfora, em função de tanto uso, suponho. Por um lado se toma a capacidade da ação humana como um poder ilimitado e infalível, porque as possibilidades de falhas foram previstas; mas ao mesmo tempo, restringimos e tolhemos a capacidade da ação humana de meter-se a meditar a realidade, a aceitar as falhas. Por que o desígnio divino é evocado para ignorar tragédias, mas não para se prevenir da possibilidade de falha humana? São contradições que coletivamente nos levam ao desastre.

Quem se dedicará, afinal, à epistemologia, a curar o descontrole das conclusões, em tempos líquidos e de massas? No longo prazo estaremos todos mortos, dizia Keynes.

A cultura moral, contudo, está aí para nos salvar. Uma solidariedade uns com os outros nos leva a uma abertura gradual e a ouvir-se mutuamente, diante do conhecimento construído geração após geração. Na sua forma mais primitiva, o ‘temor de Deus’, a virtude que consta nos textos sagrados, nos recorda, quando a lógica falha, que é preciso dosar a nossa audácia, até mesmo porque estamos numa realidade interdependente, na qual a minha exclusão do outro irá paralisar processos dos quais dependo. Uma reflexão assim deveria ter todo homem e mulher de Estado, se não é o caso de cobrar que todos sejam chamados a essa reflexão, pois muito mais desejável seria viver em uma sociedade ciente dos seus limites de compreensão. A realidade não é completamente cognitiva, e me parece louvável que a razão de Estado seja cultivada com a prudência. O que se espera das autoridades é que tenham sido encorajadas as decisões de buscar sempre o que é mais seguro em ambientes nos quais a vida de pessoas se encontram em risco, não necessariamente por uma lei, mas por uma aptidão.

Apesar de gostar muito dos filósofos, eu sempre duvidei que pudesse ir por esse caminho. Foi uma surpresa descobrir que Hannah Arendt, quem homenageio, preferia ser ‘teórica política’ a ‘filósofa’. Ainda não consegui perceber a diferença, sinceramente. A filosofia não inclui as construções teóricas? Por ora, portanto, prefiro os profetas que, na impossibilidade moral de deixar de pregar, depois de ter teorizado e encontrado seu múnus, o faziam sabiamente no deserto, para não incomodar a gente importante, nem se corromper com os grandes públicos. Ao deserto só iam consultá-los realmente os que haviam exaurido todas as soluções e buscavam novas, ou talvez assim os profetas procedessem para deixar registrado o que devemos saber eventualmente, e apenas se necessário, no tempo apropriado…

Portanto prego. É preciso que o exercício do poder implique em uma responsabilidade previamente estabelecida na consciência do decisor, e para isso é necessário contemplar a possibilidade de falhar em resguardar a vida e segurança das pessoas… É preciso desenvolver dispositivos de segurança que permitam a correção numa cadeia de falhas sucessivas, não apenas punições ex post. Se as autoridades fossem capazes de calcular o dano e prejuízo geral que causaria sua imobilidade, não falhariam, para início de conversa. Há, portanto, uma falha de visão do problema. Indispensável, portanto, encontrar novas metáforas para que uma consciência humana exista de se abster, de frear, alterar, precaver, ainda que seja necessário agir, para tanto. Há risco? Foi confirmado? Por que não evacuar rapidamente, sem pânico? Lembremos de Longarone, necessário reconstruir seus personagens, abominar os arrogantes, recriar imagens, ilustrar condutas a serem premiadas…

Ao final apresento dois poemas, um elaborado em 2015. O outro inexistente, pois a despeito da reação enérgica da qual o poder público desta vez não se furtou, não deu para encontrar nenhum consolo para Brumadinho, foi um soco no estômago de cada brasileiro. Talvez com o tempo venham as palavras.

Ressalva: todas as opiniões neste artigo expressas são de responsabilidade da autora, não coincidindo necessariamente com as posições do órgão público cujos quadros a autora integra nem de qualquer órgão do governo brasileiro.

O que era doce acabou-se. Ana Paula Arendt.

Eu não vou fazer poema
Pois já há versos do Drummond
Para explicar o que é o inverso
Do que parecia ser bom.
Vou fazer uma parlenda
Na clareira de um jardim
Para as crianças que pediram
Uma música ao querubim.
Morreram tantos peixinhos
E o que fizeram de ruim?
Boiaram em lama e sujeira
Ao invés de mandar beijos pra mim.
Na rua, enterradas as pessoas
Mas tinha gente, ainda, com pá
Querendo escavar as memórias
De quem não conseguia chorar.
Foi triste o dia, em que ouvi a alegria
No Rio Doce se dissipar.

Ana Paula Arendt, poeta e diplomata brasileira, escreve mensalmente na coluna ‘Terra à Vista’.